Ex-internos de hospital psiquiátrico vivem nova realidade
Seis moradores da primeira residência terapêutica de São Bernardo viajam no dia 6 de junho para Porto Seguro, cidade do litoral sul da Bahia. Acompanhem esta lição de superação
- Data: 30/05/2015 11:05
- Alterado: 16/08/2023 16:08
- Autor: Redação
- Fonte: PMSBC
Ex-internos de hospital psiquiátrico se preparam para viagem a Porto Seguro
Crédito:Valmir Negrin
Eles passaram décadas vivendo em hospitais psiquiátricos. Alheios à realidade e limitados aos muros dessas instituições, perderam suas identidades, gostos, laços sociais e relação com familiares. Confinados pelo diagnóstico de seus transtornos mentais e ingestão de remédios tarja preta, nunca tiveram acesso a terapias que pudessem reinseri-los em suas comunidades. As internações prolongadas deixaram estigmas e sequelas, mas hoje a história que escrevem é bem diferente. Ao trocar o manicômio por uma casa, há seis anos, eles voltaram a escolher e a desejar. E decidiram voar de avião.
Os moradores da primeira residência terapêutica masculina de São Bernardo do Campo, inaugurada em 2009, estão prestes a viajar para Porto Seguro, cidade do litoral sul da Bahia. O passeio foi planejado e bancado por eles, que são ex-internos do Hospital Lacan e foram beneficiados pela reforma psiquiátrica promovida pelo município.
“Isso é uma vitória enorme. Eles vieram de um contexto de muita privação. Ouvir que eles querem sair e conhecer um lugar novo é algo a se comemorar, apoiar e viabilizar”, comenta Maria Aparecida Nardini da Silva, a Cidinha, monitora responsável pela residência.
A ideia da viagem foi de Cícero Vicente da Silva, 83 anos. Antes da desinternação, ele viveu 25 anos no Lacan. “Já andei de carro, de ônibus. Mas tenho vontade de subir no avião”, conta. A partir daí, começaram a pesquisar os destinos, com a ajuda dos cuidadores, os acompanhantes terapêuticos (ATs) que trabalham na casa. Como ir à praia é o passeio preferido de todos, optaram por uma cidade litorânea. Por meio de fotos mostradas por Cidinha no laptop, escolheram Porto Seguro. Tudo foi votado em assembleia, que é realizada uma vez por semana para discutir os assuntos domésticos.
Dos nove moradores da Residência Terapêutica Artêmio Minski, seis aderiram à viagem. Enquanto Cícero conta os dias para comer caranguejo à beira mar, seu colega Miguel Ribeiro, 47, se prepara para o city tour. “Vai ser bonito conhecer a cidade. E tomar banho de mar.” Por sua vez, Juvenal de Souza Leal, 53, está ansioso para dançar. “E para ver as moças bonitas”, conta.
O grupo será acompanhado por Cidinha, pelos ATs Maria Regina Lemes, Viviane de Freitas e João Carlos Luiz e pela terapeuta ocupacional Ana Paula Silvério Munhoz da Paz. Todos os funcionários pagaram o pacote turístico com recursos próprios, assim como os moradores. Desde que deixaram o hospital, os ex-internos recebem bolsa auxílio para custear parte de suas necessidades pessoais, como roupas e lazer.
“Quando houve a desospitalização, eles tinham grandes dificuldades, até para se comunicar. Não tinham autonomia nem autoestima, não sentiam que tinham direitos. O desejo é uma construção, feita dia após dia desde que estão nesta casa. Hoje eles estão muito apropriados da vida deles, da rotina. É um orgulho para nós”, afirma Ana Paula.
Até o embarque, dia 6 de junho, vários detalhes precisam ser acertados. Renovar documentos, comprar mala, toalhas, roupas novas. O que não pode faltar? “Sunga e boné!”, eles respondem, em coro. Serão cinco dias de uma liberdade que eles ainda não experimentaram. “Fazemos muitos passeios, eles sempre vão à praia, parques, almoçar em restaurantes. Mas nunca ficaram tanto tempo fora. Vai ser uma boa experiência”, avalia Cidinha.
Rotina – Enquanto a viagem não chega, os moradores mantêm a rotina. Júlio Bonifácio, 63 anos, gosta da cozinha. É ele quem faz a melhor salada, concordam os colegas. Ele se divide entre os afazeres domésticos e o trabalho na pastelaria do Núcleo de Trabalho e Arte (Nutrarte), que oferece cursos de geração de renda a usuários da rede de saúde mental. Júlio faz as compras e também põe a mão na massa. “Passei a vida inteira internado. Desde menino. Hoje faço muitas coisas.”
Assim como Júlio, todos na casa têm agenda cheia. Alguns têm aulas do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova) no Caps, outros preferem aprender técnicas de artes na Pinacoteca ou participar das oficinas terapêuticas. Há quem frequente a missa aos domingos, ou assista ao jogo do Tigre (São Bernardo) no Estádio Primeiro de Maio. Aos poucos, foram redescobrindo o fazer simples do dia a dia, como estender roupas no varal, cuidar do jardim, preparar churrasco, servir café para as visitas, ir ao supermercado e escolher o que comer, assistir televisão na sala com os amigos. Uma rotina que lhes foi negada pela prática de se esconder pessoas em sofrimento psíquico e privá-las do convívio social.
Atualmente, São Bernardo possui seis residências terapêuticas — quatro masculinas e duas femininas –, que atendem a 50 ex-“moradores” do Lacan.