Vera Holtz vive as realidades imaginadas por Yuval Harari
Inspirado no livro ‘Sapiens’, atriz brinca e instiga plateia a pensar sobre capacidade humana de construir ficções coletivas
- Data: 19/01/2023 15:01
- Alterado: 19/01/2023 15:01
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Crédito:Reprodução
Era 2018 quando o produtor teatral Felipe Heráclito Lima ficou ao mesmo tempo tocado e intrigado pelo livro Sapiens – Uma Breve História da Humanidade (Companhia das Letras), do historiador israelense Yuval Noah Harari. “Apesar do texto denso, científico a mensagem era poderosa, ampla, e nos ajuda a refletir sobre os dias atuais”, conta ele, que negociou durante dez meses até conseguir a liberação do próprio Harari. “Venci pelo cansaço”, brinca, orgulhoso do fruto desse trabalho, Ficções, que estreia nesta quinta, 19, no Teatro Faap.
Não se trata de uma adaptação, mas de algo mais elaborado. “Digamos que seja uma transposição”, comenta Rodrigo Portella, encenador e também responsável pelo texto do monólogo defendido com impressionante garra por Vera Holtz. “Escrevi em conjunto com todos os envolvidos no processo, a partir da ideia de realidades imaginadas, criada por Harari”, explica.
De fato, no livro, que já soma mais de 23 milhões de cópias vendidas em todo o mundo, o historiador argumenta que o Homo sapiens domina o mundo porque é o único animal capaz de cooperar de forma flexível em grande número e o faz por ser a única espécie capaz de acreditar em coisas que não existem na natureza e são produtos puramente de sua imaginação, como deuses, nações, dinheiro e sistema político.
Foi justamente essa analogia com as artes cênicas – que também tem a capacidade de criar mundos e narrativas – que orientou Portella no processo de escrita. Dada a complexidade científica do tema, ele percebeu que seria improdutivo selecionar trechos do livro publicado em 2014 e simplesmente transformá-los em cenas. “Tive a certeza da necessidade de construir uma dramaturgia original a partir das premissas do Harari que seriam interessantes para a espetáculo”, explica ele, tampouco interessado em tornar o assunto mais palatável para a plateia. “Muito pelo contrário: busquei um caminho para o qual o espectador é convidado e provocado a construir a narrativa à medida que acompanha a peça com a gente. É uma espécie de jam session.”
Feminina
Logo no início do processo, o encenador percebeu que o protagonismo teria de ser assumido por uma atriz. “Nos últimos anos, a importância do trabalho da mulher vem sendo destacada, portanto era natural que tivéssemos uma Homo sapiens feminina em cena”. E Portella imediatamente pensou em Vera Holtz para o papel. “Ela não tem apenas conhecimento cênico, mas opera em outras linguagens como a música e as artes visuais. Isso permite fazer tranquilamente o desdobramento de identidades pedido pelo texto.”
Aos 70 anos, Vera Holtz volta aos palcos em grande forma: repleta de estilo, charme e energia, sua interpretação hipnotiza o espectador, que logo se convence de que o teatro é uma ferramenta para mudar o mundo. Durante quase uma hora e meia, ela se divide em diversos personagens, que são identificados apenas por uma troca de vestuário ou entonação da voz.
O tom é dado logo na primeira cena, na qual uma mulher nômade quer voltar à sua origem, momento em que pontos importantes da argumentação de Harari são apresentados, como lembrar que a Terra, em seus quase 4,5 bilhões de anos de existência, foi dominada, em apenas uma fração ínfima desse tempo, pela espécie humana, a mais evoluída e mais destrutiva entre todas as outras que já passaram pelo planeta. O paradoxo é que, apesar de ser mais poderoso que seus ancestrais, o homem atual não é mais feliz que eles.
A partir de um questionamento proposto pelo livro (o ser humano está usando sua característica mais singular para construir ficções que proporcionem, coletivamente, uma vida melhor?), Vera vive diferentes personas em cena, alternando drama e humor com naturalidade e tanto provocando compaixão ao dizer que é Marilyn Monroe como gargalhadas ao se assumir como Peppa Pig.
Códigos
Também a interação com a plateia é um desafio enfrentado em cada sessão. “Gosto disso, mas é o que me exigiu mais trabalho”, conta a atriz, que cria códigos específicos com os espectadores – em um deles, as pessoas aplaudem quando ela exibe seios postiços; em outra cena, a atriz faz uma série de perguntas pertinentes (como “você já realizou todos os seus sonhos”) para as quais o público responde ficando sentado ou em pé.
Seu maior desafio cênico, porém, é simular a existência de diversas pessoas que estão no teatro e que, a partir de um debate proposto por ela, começam a emitir suas opiniões. Assim, surgem a mulher de azul com sotaque gaúcho na segunda fileira, o homem de voz sisuda na frente, a moça de mente mais relaxada sentada mais ao fundo, todos “interpretados” pela mudança de voz da atriz. O mais inusitado da cena é que Vera simula sua saída do palco, assustada com o grau atingido pela discussão acalorada. “Digo que vou fumar lá fora, justo eu que nem fumo”, diverte-se.
Enquanto interpreta, a atriz divide o palco com o músico Federico Puppi, autor e performer da trilha sonora original. “Os improvisos dele com o violoncelo ajudam a trabalhar com o imaginário da plateia, de poder criar e descriar”, diz Vera. “Trago a música como outra linguagem da peça”, comenta Puppi.