Sócia de representante de vacina indiana deve R$ 20 MI à Saúde por não entregar remédio
Acordo foi fechado em 2017, quando o ministro era o deputado Ricardo Barros; o atual líder do governo na Câmara, que tem se desentendido com a Anvisa
- Data: 18/02/2021 18:02
- Alterado: 18/02/2021 18:02
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Ricardo Barros
Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil
A empresa que tenta trazer ao Brasil a vacina indiana Covaxin tem entre suas sócias uma firma que deve R$ 20 milhões ao Ministério da Saúde. O valor é referente à compra de remédios de alto custo que nunca chegaram às mãos de pacientes de doenças raras. O contrato foi feito no fim de 2017, quando o ministério era chefiado pelo atual líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR). Passados mais de três anos, a pasta diz ainda negociar o ressarcimento.
No fim de 2018, o Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) entrou com uma ação contra a Global Gestão em Saúde S. A., contra Barros e servidores que atuavam no Ministério da Saúde na época. A suspeita dos procuradores é de que o o atual líder do governo Jair Bolsonaro beneficiou a empresa em contratos. O caso tramita na Justiça Federal do DF e a Procuradoria pede que os réus paguem R$ 119,9 milhões, valor que inclui o ressarcimento e danos morais a pacientes.
Segundo dados da Receita Federal, a Global é uma das sócias da Precisa Medicamentos, empresa que representa no Brasil o laboratório indiano Bharat Biotech, fabricante da Covaxin, uma vacina contra a covid-19. O presidente da Global, Francisco Emerson Maximiano, também é sócio administrador da Precisa.
Apesar do processo envolvendo a Global, nenhuma das duas empresas está impedida de firmar contratos com o governo federal.
O Ministério da Saúde negocia com a Precisa a compra de 20 milhões de doses da Covaxin. Segundo a pasta, o acordo só não foi fechado ainda por “atrasos nos repasses de informações” por parte da empresa. A ideia é começar a receber as doses já em março.
A negociação para a compra da vacina indiana e da Sputink V, desenvolvida na Rússia, ocorre no momento em que o governo federal é pressionado para ampliar a oferta de doses no País. Em algumas cidades, como no Rio de Janeiro, a imunização foi interrompida por falta do imunizante.
Além disso, o ministério e Bolsonaro tentam reduzir a dependência da Coronavac para a campanha de vacinação, pois o imunizante de origem chinesa é associado ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), adversário político do presidente.
Além da negociação com o governo federal, a Precisa também tem acordo para vender 5 milhões de doses ao setor privado, por meio da Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCVAC).
O imunizante já recebeu aval para uso emergencial na Índia, mas ainda tem dados de eficácia desconhecidos. O produto passa por estudos de fase 3 no país de origem. A Precisa também diz que irá solicitar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o aval para realizar estes testes no Brasil, em parceria com o instituto de pesquisa do hospital Albert Einstein.
Sócia descumpre contrato
No fim de outubro de 2017, a Global – sócia da Precisa Medicamentos – venceu edital para compra emergencial de medicamentos de alto custo para pacientes de doenças raras, apresentando proposta de R$ 19,9 milhões. A Anvisa, à época, afirmou que a Global não apresentou documentos exigidos para liberar a importação dos produtos, o que fez Barros acusar o órgão de favorecer monopólios.
O então ministro chegou a orientar pacientes, por WhatsApp, que fossem à Justiça contra a Anvisa. No mesmo período houve outras compras que opuseram Barros e a Anvisa e terminaram frustradas, mas apenas a Global recebeu o pagamento antecipado.
Após uma decisão da Justiça, a Anvisa autorizou as licenças de importação à Global. Ainda assim, a empresa não conseguiu cumprir com o contrato. Apenas poucos frascos foram trazidos ao País, que nem sequer foram distribuídos, pois eram apenas amostras de lotes.
No fim de 2018 a empresa firmou um acordo para devolver o valor do contrato em quatro parcelas. O acordo foi rompido meses mais tarde pela própria Global, que pediu para entregar o valor em 60 vezes, o que não foi aceito, segundo o ministério. A empresa chegou a propor prestar serviço de consultoria ao governo para aliviar a dívida.
Em resposta a um pedido via Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Saúde se recusou a entregar o processo atualizado de cobrança à Global. A pasta disse apenas que “encontra-se em fase de atualização do valor a ser ressarcido pela referida empresa à União”.
Na ação em que Barros e a Global são réus, a procuradora Luciana Loureiro Oliveira afirma que o ministério “insistia” em dar à empresa “todas as oportunidades possíveis de executar” o contrato, mesmo sabendo que a vencedora do edital “não tinha disponibilidade alguma sobre qualquer frasco dos medicamentos em questão e que ela não conseguiria importá-los em razão das exigências regulatórias”.
Oliveira ainda acusa, com base em depoimentos de funcionários da pasta, que Barros pressionou pelo pagamento antecipado à Global, mesmo após a empresa apresentar números de lotes para importação que seriam falsos.
Barros prometeu ‘enquadrar’ Anvisa
Atual líder do governo na Câmara, Barros tem feito críticas à atuação da Anvisa em relação ao processo de aprovação de vacinas. Em entrevista ao Estadão no dia 4, disse que iria “enquadrar” a agência, que não estaria “nem aí” para a discussão sobre as vacinas contra a covid-19. No mesmo dia, o Congresso aprovou regra que prevê um prazo de cinco dias para o órgão sanitário liberar o uso emergencial de imunizantes já aprovados em outros países.
O presidente da agência, Antonio Barra Torres, reagiu e disse que estuda ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) se a regra for sancionada.
Barros também apresentou uma emenda à medida provisória 1026/2021 para a Anvisa acelerar a análise de vacinas já autorizadas na Índia. A regra atual permite facilitar o caminho a produtos que receberam aval de agências de peso, como dos Estados Unidos, China e Europa. A emenda foi aceita no relatório sobre esta MP, que deve ser votada na semana que vem pela Câmara dos Deputados.
Procurado, Barros disse à reportagem que “rechaça” acusações do MPF sobre ter beneficiado a Global em 2017. Disse ainda que “repudia” o “ativismo político” de procuradores. O ex-ministro também declarou que, à frente da Saúde, promoveu uma política de “quebra de monopólios”.
“No caso da empresa Global, houve inexecução contratual e foram adotadas todas as providências pelo Ministério da Saúde para penalização da empresa e para o ressarcimento ao erário. Não houve favorecimento ou qualquer ato de improbidade”, disse.
O Ministério da Saúde, a Global e a Precisa Medicamentos não quiseram se manifestar.
Ao pedir a rescisão do contrato, em setembro de 2018, a Global alegou ao ministério que teve “coragem de desafiar o status quo”, mas que “não foi possível vencer todos estes obstáculos do monopólio instaurado no País para entregar os medicamentos”.
“Durante esse tempo, a Global enfrentou adversários poderosos, incentivados pela indústria do mercado farmacêutico e o feudo estabelecido e blindado por elas, que usaram iniciativas de pressão por notícias plantadas na mídia, por meios escusos e obscuros, de ameaças veladas e sutis, buscando manter sempre suas margens a qualquer preço”, alegou a empresa à época, em ofício à Saúde.