Sistemas de Inteligência Artificial podem receber patentes como inventores
Veja como a Justiça pelo mundo entende essa questão
- Data: 20/05/2023 16:05
- Alterado: 20/05/2023 16:05
- Autor: Redação
- Fonte: Ana Catarina de Alencar
Crédito:Divulgação/Freepick
Com os crescentes avanços da tecnologia, as máquinas ganharam a capacidade de criar, habilidade antes exercida apenas por seres humanos. Em 2019, uma grande polêmica foi provocada pelo sistema de Inteligência Artificial chamado “DABUS” (Dispositivo para Inicialização Autônoma de Consciência Unificada): o sistema foi responsável pela criação de um “contentor alimentar melhorado para alimentos”, entre outras invenções interessantes.
A equipe do sistema “DABUS”, liderada pelo Dr. Stephen Thaler, apresentou vários pedidos de patente para esta criação, listando a própria Inteligência Artificial como inventora nos registros. A equipe entende que as criações do DABUS foram geradas autonomamente pelo sistema de IA, sem qualquer intervenção humana. Logo, não haveria um ser humano que pudesse ser titular das invenções.
Hoje, sabemos que a Inteligência Artificial é capaz de gerar um número massivo de criações, incluindo músicas, filmes, textos e, até mesmo, descobertas científicas que colaborem para o bem da humanidade. Entretanto, uma pergunta permanece ainda sem resposta: a Inteligência Artificial pode ser considerada ‘inventora’ de aplicações no mercado?
Nos EUA, o USPTO (Escritório de Patentes e Marcas dos EUA) rejeitou a possibilidade de se considerar a IA como inventora. Conforme pontuado pela autoridade de proteção da propriedade intelectual norte-americana, mesmo que um sistema de IA preencha todos os requisitos para que seja patenteável, o inventor deve ser, necessariamente, um ser humano, pois este seria o “sentido original” dado ao termo “inventor” pelas pessoas que conceberam a legislação no passado.
No Reino Unido, uma decisão da Suprema Corte de Justiça sobre os pedidos de patentes relacionados ao mencionado sistema DABUS reafirmou este mesmo entendimento. A decisão da Corte estabeleceu que como o sistema DABUS é um “bem”, pelo Direito Civil, ele não pode deter a titularidade dos direitos sobre a propriedade industrial, muito menos a possibilidade de transferi-los. Este entendimento também é seguido pela jurisdição da China e pelo Instituto Europeu de Patentes (EPO).
Na Austrália, o pedido apresentado para o DABUS foi, inicialmente, rejeitado pelo Escritório de Patentes. No entanto, depois de apresentado um recurso pelo Dr. Stephen Thaler, o Tribunal Federal da Austrália reverteu a decisão do Escritório, sustentando que um sistema de IA pode se qualificar como inventor de acordo com uma interpretação sistêmica da lei.
Esta decisão foi paradigmática, inaugurando uma grande polêmica para juristas e empresas que utilizam IA na criação de aplicações. O juiz federal australiano Jonathan Beach afirmou que “somos ambos criados e criamos. Por que nossas próprias invenções não podem criar?”.
Além disso, explicou que há uma distinção fundamental entre a propriedade de uma patente e quem pode ser um inventor. Haveria uma diferença a ser considerada entre quem pode ter os direitos econômicos decorrentes da patente e quem pode ser listado como titular da invenção. Na opinião do juiz Beach, o Escritório de Patentes australiano confundiu estes dois aspectos ao rejeitar o pedido do DABUS. Embora o caso ainda esteja pendente de uma decisão final, há sinalização favorável para que o sistema DABUS seja confirmado nas instâncias superiores como uma IA inventora.
No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) também analisou um pedido de patente apresentado para o sistema DABUS em 2022. O INPI não concedeu o título de inventor ao sistema de Inteligência Artificial pois, na legislação brasileira, o direito de ser inventor só pode ser exercido por aqueles que detém “personalidade” jurídica, segundo a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil. Como os direitos de personalidade não são atribuídos às máquinas (e figuras não-humanas em geral), uma IA não poderia ser considerada inventora.
Porém o próprio INPI reconhece em seu parecer que “o reconhecimento da existência de direitos por parte de não-humanos […] parece ser uma tendência inexorável” e, aponta para “a necessidade de que seja elaborada e editada nova legislação específica que discipline e a inventividade de máquinas dotadas de IA” para garantir a “preservação de investimentos e […] evitar o desestímulo no segmento”.
Nesta linha, o juiz australiano Jonathan Beach já havia afirmado que limitar as invenções apenas para seres humanos “inibiria a inovação não apenas no campo da ciência da computação, mas em todos os outros campos científicos que podem se beneficiar do resultado de um sistema de inteligência artificial.”
Os pesquisadores que criam sistemas de IA podem ser significativamente desestimulados a desenvolverem máquinas criativas devido à falta de proteção e reconhecimento dos direitos relacionados. Importante destacar que o valor do mercado global projetado para a IA até 2027 é de US$ 267 bilhões. Além disso, as inovações de IA deverão contribuir com pelo menos US$ 15,7 trilhões para a economia global até 2030.
Em documento endereçado ao USPTO em 2022, o Senado norte-americano expressou esta preocupação e solicitou que o USPTO organizasse uma comissão nacional ao longo de 2023 para pensar as novas estruturas legais necessárias à proteção das criações da IA. No documento, o Senado reconhece que o USPTO assumiu uma posição contrária à proteção das invenções geradas pela IA, mas, expressa seu interesse em saber como a lei deveria ser, no futuro, para incentivar inovações no setor.
É evidente que as legislações sobre patentes ao redor do mundo surgiram em um contexto histórico diferente e que seus legisladores não poderiam ter previsto a existência de máquinas inventoras no futuro. Essa é a razão pela qual a legislação atual só admite pessoas naturais como titulares de invenções.
Mas os movimentos de reguladores, tribunais e legisladores já apontam para um novo cenário jurídico de alteração da legislação propiciando maiores investimentos e reforço da segurança jurídica no setor de IA. Com o surgimento de inúmeros modelos sofisticados e com o “boom” das IA’s generativas resta à legislação de propriedade intelectual se reinventar, assim como se reinventaram os tempos em que vivemos.
Ana Catarina de Alencar é advogada, pesquisadora do Legal Grounds Institute.
Sobre o Legal Grounds Institute
As novas tecnologias de informação ao transformar e criar novas formas de comunicação individual e coletiva, redimensionam e reconfiguram a infraestrutura sobre a qual se constrói a esfera pública democrática. Para que os valores democráticos e de liberdade individual prevaleçam nessa nova esfera, o Brasil enfrenta vários desafios em relação à regulação das comunicações, mídias e proteção de dados pessoais. O Legal Grounds Institute pretende enfrentar esses desafios, junto a organizações públicas e privadas, ambicionando criar arquiteturas jurídicas de regulação que assegurem os valores democráticos e os direitos fundamentais.