Sea-Watch contesta detenção de navio de busca e salvamento no Mediterrâneo
A organização entrou com recurso jurídico para a liberação da embarcação Sea-Watch 4, detido na Itália. Navio é usado para salvar vidas no Mediterrâneo
- Data: 24/10/2020 16:10
- Alterado: 24/10/2020 16:10
- Autor: Redação
- Fonte: MSF
Bote de borracha com 97 pessoas
Crédito:Hannah Wallace Bowman/MSF
Mais de um mês após a embarcação de busca e salvamento Sea-Watch 4 ter sido detido em Palermo, na Itália, bloqueios administrativos continuam a impedir que o navio retorne ao Mediterrâneo central. Proprietária do navio, a organização Sea-Watch entrou com um recurso legal em tribunal administrativo italiano, contestando a detenção.
A organização internacional de ajuda médica-humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha em colaboração com a Sea-Watch a bordo do Sea-Watch 4 fornecendo cuidados de saúde e apoiando a assistência humanitária para as pessoas resgatadas. A organização médico-humanitária tem uma equipe de prontidão aguardando com urgência a liberação do navio, para que possam voltar a salvar vidas. Eles estão paralisados enquanto pessoas ainda correm risco de morte em alto-mar. Somente nesta semana, cerca de 20 pessoas, incluindo duas crianças e uma mulher grávida, morreram na região. Outras cinco estão desaparecidas.
“Desde 19 de setembro, o Sea-Watch 4 não consegue navegar, não consegue retomar as operações, está efetivamente preso”, disse Beatrice Lau, coordenadora-geral de MSF. “Pelo menos 80 pessoas, possivelmente muitas mais, perderam a vida no Mediterrâneo central desde que o navio foi apreendido. Centenas de outras pessoas foram devolvidas à força para a Líbia, onde podem estar sujeitas a tortura e abusos”.
MSF reconhece e respeita a importância dos controles de segurança portuária como um componente essencial do direito marítimo. A organização, porém, teme que a decisão das autoridades italianas tenha motivação política e se baseie em interpretações legais das normas vigentes com fins de obstruir as operações no Mediterrrâneo para o resgate de pessoas em busca de refúgio e asilo, realizadas pela embarcação Sea-Watch 4.
Após uma inspeção de 11 horas da embarcação por autoridades portuárias italianas, o Sea-Watch 4 recebeu uma ordem de detenção com base em uma lista de irregularidades que variavam entre lâmpadas fora de funcionamento e outras exigências menores. Uma das irregularidades apontadas pelas autoridades italianas foi o transporte de 354 pessoas, resgatadas com vida pela embarcação em alto-mar, o que excede o número total de pessoas para as quais os coletes salva-vidas podem ser fornecidos no navio. As organizações envolvidas no resgate argumentam que as autoridades italianas ignoram a natureza das operações da embarcação ao considerar o número de coletes e ressalta que é dever dos comandantes de navios prestar assistência a pessoas em perigo no mar, uma obrigação consagrada na Convenção Internacional sobre Busca e Salvamento Marítimo.
A interpretação das autoridades é questionada também com base na liberação de autoridades maltesas que solicitaram a embarcação de um segundo contingente de outro navio de busca e salvamento, depois de o barco ter sido forçado a pedir socorro enquanto se encontrava na região de busca e salvamento de Malta. Nesse episódio, os navios da guarda costeira italiana evacuaram 49 pessoas em situação de risco, deixando o resgate de 152 sobreviventes restantes a cargo do Sea-Watch 4.
“Em um espírito de cooperação, trabalhamos duro para consertar o que pudemos, apesar de algumas das irregularidades declaradas serem pequenas demais para justificar a detenção”, afirmou Barbara Deck, coordenadora do projeto de MSF a bordo do Sea-Watch 4. “O resto é francamente impossível de cumprir – por exemplo, o Estado de bandeira do navio, a Alemanha, simplesmente não fornece o tipo de certificação exigida pelas autoridades italianas, o que torna essa irregularidade impossível de corrigir. Por essa razão, tememos que os procedimentos legítimos e as leis marítimas estejam sendo transformados em armas pelas autoridades italianas para interromper as atividades de busca e salvamento.”
Para as organizações humanitárias, a detenção do Sea-Watch 4 faz parte de uma série de medidas antimigratórias que impedem MSF e Sea-Watch de realizar atividades de salvamento, de acordo com a legislação internacional e nacional. Sea-Watch 4 foi o quinto navio de uma lista de embarcações de busca e salvamento de uma organização não-governamental a ser detido em portos italianos nos últimos meses. Em 10 de outubro, o navio da ONG Alan Kurdi foi detido pela segunda vez em seis meses na Sicília. Em 22 de outubro, o navio de resgate Louis Michel, financiado pelo artista Banksy, anunciou que também não podia deixar o porto porque seu registro estava sendo contestado.
Os governos da União Europeia (UE) retiraram a capacidade de busca e resgate da fronteira marítima mais mortal do mundo. Organizações internacionais e humanitárias contestam que os Estados adotam medidas antimigratórias ao mesmo tempo em que prometem abordagem mais humana para a migração no recente pacto que assinaram sobre a pauta. MSF e Sea Watch argumentam que os governos da EU deveriam se empenhar em operações de busca e salvamento no Mediterrâneo, mas que, diante da negativa, deveriam ao menos deixar que ONGs realizem esse trabalho de salvamento.
MSF e Sea-Watch salientam que acontecimentos recentes no Mediterrâneo central expuseram as consequências mortais da decisão dos Estados europeus de desconsiderar “um dever legal e moral de salvar vidas, ao mesmo tempo em que optaram por impor medidas burocráticas e administrativas abusivas sobre ativos que salvam vidas”. Desde a detenção de Sea-Watch 4, pelo menos 80 pessoas morreram em naufrágios na costa da Líbia e da Itália. Em um deles, um barco com 12 pessoas navegou no Mediterrâneo central por 10 dias. Cinco pessoas que estavam a bordo estão desaparecidas. As notícias, no entanto, não encontram ressonância entre governos europeus e autoridades marítimas. Apenas quatro dias depois de sinalizado o desaparecimento, uma operação de buscas foi realizada na região.
Enquanto isso, o bloco europeu continua a financiar e treinar a Guarda Costeira da Líbia para interceptar barcos que saem do país com destino a outros banhados pelo Mediterrâneo. Publicamente, no entanto, o bloco chegou a reconhecer que a Líbia não é um lugar seguro para as pessoas regressarem e ficarem detidas. Em 8 de outubro, dois navios pertencentes à Guarda Costeira da Líbia voltaram ao país africano após serem submetidos a reparos pagos pela Itália e pela UE. Esses navios serão usados para capturar pessoas no mar e mantê-las nos territórios de onde estão tentando fugir.
Ao longo de 2020, ao menos 506 pessoas perderam a vida no Mediterrâneo central e quase nove mil foram devolvidas à força à Líbia.