Podcast reconta a morte de mulheres artistas e desmistifica homens célebres
'Death of an Artist' recupera as histórias de Ana Mendieta e Lee Krasner e de como seus companheiros afetaram suas carreiras
- Data: 12/08/2024 14:08
- Alterado: 12/08/2024 14:08
- Autor: Redação
- Fonte: Raphael Concli/Folhapress
A artista plástica Lee Krasner, mulher de Jackson Pollock
Crédito:Reprodução
Uma poça de sangue banha a calçada em frente à porta surrada de um estabelecimento qualquer na cidade de Iowa, nos Estados Unidos. Os passantes estranham, mas desviam e seguem até que aquilo não lhes diga mais nada.
É com essa obra da artista Ana Mendieta que começa a primeira temporada do podcast “Death of an Artist”. A escolha não é casual. A obra guarda semelhança sinistra com a morte da própria artista cubana, radicada nos Estados Unidos. Mendieta foi encontrada morta devido à queda do apartamento onde morava em Nova York com o também artista Carl Andre.
As circunstâncias controversas deste evento são o eixo da temporada inaugural, de 2022. Agora, em 2024, a série retorna e se amplia, abordando a trajetória da artista Lee Krasner e sua relação com Friedrich Pollock, figura central do expressionismo abstrato.
Com riqueza de fontes do meio das artes, entre curadores e historiadoras, o podcast recupera as histórias destas artistas e mostra como seu brilho próprio foi em parte ofuscado por homens -companheiros de ambas, inclusive- que se tornaram nomes canônicos das artes.
Esta premissa pode soar um tanto óbvia e, talvez, pouco atraente ao ouvinte saturado por histórias do tipo. Mas “Death of an Artist” fica longe de uma narrativa previsível. A série é convidativa até para os leigos -mas dispostos- a entrar no universo das artes, seus jogos de poder e interesse, e como estes interferem no julgamento de artistas, seja estético ou jurídico.
Isso fica evidente na história de Ana Mendieta, artista que teve uma produção forte abordando temas como corpo, feminilidade, violência e a experiência do desterro. Enquanto buscava seu lugar no mundo das artes, Carl Andre já havia garantido o seu, como um dos fundadores do movimento minimalista.
Visto no meio artístico como uma figura revolucionária e questionadora de convenções, alguém de quem Ana teria muito a ganhar ao se aproximar, o papel de Andre na morte de Mendieta tornou-se um tabu duradouro no mundo das artes, mesmo após sua absolvição em julgamento.
Inspirada pelo movimento MeToo, a apresentadora Helen Molesworth decide retomar a questão – se não para descobrir algo novo sobre o papel de Andre, ao menos para contar o que o silêncio sobre a morte de Mendieta expressa sobre o mundo das artes.
Ela mesmo uma curadora com trânsito neste meio, Molesworth descobre que até hoje há quem prefira não se manifestar a respeito daquele evento -o que, como ela diz, beneficiou sobretudo Andre, que morreu em janeiro deste ano.
Nesta investigação, Molesworth revela como esta figura do artista genial serve como proteção institucional e pessoal. Falar sobre o caso é um risco que aqueles próximos demais ao escultor preferem não correr: de perderem relações e prejudicarem negócios; de destruírem a imagem de um ícone e um conjunto de ideias por ele representado. No mercado das artes, tudo isso tem seu valor.
É provocativa também a associação feita por ela entre museus e tribunais: ambas são instituições tomadoras de decisão e validação de algo, lugares que dão legitimidade ou não a uma história.
E a versão de Andre venceu: no tribunal não se encontraram evidências definitivas que o atestassem como assassino, embora, como o podcast mostra, as várias versões conflitantes que ele mesmo contou permitissem suspeitas razoáveis sobre ele e a investigação. No mundo artístico, sua carreira seguiu sem maiores perturbações.
Mas Mendieta e sua produção também foram julgadas: sua personalidade intempestiva, suas performances tematizando a morte e o corpo feminino e mesmo seu interesse pela santeria -religião de matriz africana presente em Cuba e tematizada em seu trabalho- tudo isso serviu para alimentar a argumentação de que ela teria se matado.
Só que Molesworth consegue ir além da morte da artista, recuperando a relevância crescente da cubana hoje. Esse é um desafio particular que o podcast enfrenta com sucesso -descrever, ou melhor, contar sobre produções de artes visuais.
Em ambas as temporadas isso surge de forma bem integrada à narração e às percepções das apresentadoras, que ao relataram como tais produções as afetam, nos fazem um convite sensível a imaginar -e mesmo a procurarmos depois- como essas obras são. Talvez poderíamos ter tido mais momentos destes.
É notável na segunda temporada o momento em que Lee Krasner visita a galeria que mais tarde se tornaria o Museu de Arte Moderna de Nova York. Aluna de uma prestigiosa, mas conservadora escola de arte na cidade, Krasner é impactada pelo que descobre ali. São obras como a de Picasso, Magritte e outros expoentes da arte moderna europeia, que se afastam cada vez mais do papel figurativo da arte.
Essa descoberta abriria os caminhos da produção mais abstrata de sua obra multifacetada.
Conduzida por Katy Hessel, que mantém a narrativa envolvente de Molesworth, a segunda temporada, aliás, expande para outros sentidos a ideia-guia do podcast. Da morte de qual artista se está falando -ou ainda, de que morte?
Pode ser a “morte” parcial da carreira artística de Krasner enquanto Pollock era vivo, já que ela serviu de verdadeiro sustento à carreira dele.
Mas pode ser também a morte da imagem mítica de Pollock como o maior artista plástico americano do século passado -ou ao menos da aura de gênio individual.
Como conta o podcast, além de inspirar Pollock como artista, Krasner foi quem teve faro e atitude para inseri-lo no mercado de arte, trazendo um crítico de peso que promovesse suas obras, negociando-as em galerias -postura empreendedora impensável para mulheres no mundo das artes no meio do século passado.
É com o acidente de carro em que um embriagado Pollock morre que a segunda temporada abre. O evento, e como foi administrado com maestria e objetividade por Krasner, é simbólico da relação entre ambos. Daí seguimos para uma cronologia da vida de Krasner até retornar à morte de Pollock e depois, quando a carreira dela mesmo ascendeu, agora ocupando com suas telas os espaços que antes cedeu ao companheiro.
Aqui a sonorização soa melhor resolvida também quanto ao uso de trilhas, que não produzem um excesso de quebras e microcenas. Já a opção por efeitos sonoros literais soa dispensável.
Como uma boa visita a uma galeria ou museu, saímos de “Death of an Artist” com o desejo de voltar. O que se fez até aqui mostra que a série ainda pode ter muito a contar.
DEATH OF AN ARTIST
Onde: Disponível nas plataformas de streaming
Autoria: Katy Hessel e Helen Molesworth