Papa elege Victor Fernández para chefiar Doutrina da Fé católica
Em vez de uma nota seguida de um breve currículo, o arcebispo argentino ganhou uma longa descrição de sua carreira, seguida de uma lista com seus principais livros e artigos publicados
- Data: 08/07/2023 12:07
- Alterado: 08/07/2023 12:07
- Autor: Redação
- Fonte: Edison Veiga/FolhaPress
Crédito:Arzobispado de La Plata via Instagram
Foi um boletim incomum para uma nomeação um tanto incomum. Ao oficializar o então arcebispo da cidade argentina de La Plata, Victor Manuel Fernández, como o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, no último dia 1º, o papa Francisco pavimenta a reforma no histórico órgão da Igreja Católica.
Amigo do pontífice e ghost-writer de vários documentos assinados por ele, além de autor de livros, como “Sáname con Tu Boca – El Arte de Besar”, em que incentiva casais a capricharem nos beijos, com erotismo, Fernández foi apresentado de forma muito mais sofisticada do que costuma ocorrer nessas nomeações.
Em vez de uma nota seguida de um breve currículo, o arcebispo argentino ganhou uma longa descrição de sua carreira, seguida de uma lista com seus principais livros e artigos publicados –o dos beijos não foi mencionado– e até mesmo uma cópia da carta que Francisco escreveu a ele, informando-o da escolha.
A carta dá as pistas do que o papa espera de seu braço-direito. No primeiro parágrafo, ressalta que o dicastério precisa cumprir seu trabalho de custodiar a fé agindo “não como inimigo”. Na sequência, admite que a Doutrina da Fé, “em outras épocas, chegou a utilizar métodos imorais”. “Foram tempos em que mais do que promover o saber teológico, foram perseguidos os possíveis erros doutrinais”, diz o pontífice.
Hoje chamada de Dicastério para a Doutrina da Fé, o mais antigo dos 16 organismos do tipo que formam a cúpula do Vaticano, a instituição é a sucessora do famigerado Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, que perseguia e muitas vezes condenava à morte aqueles considerados hereges e que durou até o século 19. Por 23 anos, um cardeal que viria a ser papa, o alemão Joseph Ratzinger, depois Bento 16, chefiou o órgão.
Pela reforma instituída por Francisco, o dicastério é um dos três principais, ao lado do Dicastério para a Evangelização e do Dicastério para o Serviço da Caridade –o tripé que faz o atual pontificado funcionar.
É a partir dessa reforma de Francisco, aliás, que deve ser lida a escolha de Fernández. Se historicamente a função do organismo é ajudar o papa e os bispos a tutelarem e protegerem a integridade da doutrina católica, numa postura mais defensiva, a ideia agora é que o órgão dialogue com a contemporaneidade.
“Com a nova Constituição [em vigor desde o ano passado], o papa incluiu o anúncio do Evangelho dentro da Doutrina da Fé, além da função de tutela. É uma configuração nova: a ideia de que se está no meio do mundo e que é necessário agir sem impor uma visão de mundo”, diz o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Para ele, o anúncio de Fernández coloca “tudo numa perspectiva diferente”, dada sua biografia. “As funções são as mesmas, mas Francisco demonstra que tudo deve ser feito de um jeito novo, dialogando com a sociedade, de forma aberta, em sintonia com as igrejas locais, a ciência e o mundo.”
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes vê a mudança como “coerente com a trajetória de Francisco”, já que a Doutrina da Fé é “um setor simbólico e estratégico”. “Mostra que a igreja assume uma postura mais acolhedora”, aponta. “E isso não significa abrir mão de princípios doutrinários. A Doutrina da Fé é remanescente daquela igreja que tinha o poder espiritual e secular. Essa igreja já não existe mais”, compara ele, sobre os tempos da Inquisição.
Mas a nomeação também suscita críticas. À imprensa o grupo americano Bishop Accountability chamou a escolha de “preocupante”. Dedicada a monitorar casos de abusos envolvendo sacerdotes católicos, a organização diz que Fernández “apoiou veementemente” um padre acusado de abuso sexual infantil em sua arquidiocese e deveria “ser investigado [pelo Vaticano], não promovido”.
Em comentário publicado no diário católico La Croix International, o vaticanista Robert Mickens avaliou a nomeação de Francisco como “uma bomba” que deve incomodar os católicos mais tradicionalistas.
Prestes a completar 62 anos –seu aniversário é no próximo dia 18–, Fernández nasceu na província de Córdoba e se tornou sacerdote em 1986. Ganhou o apelido de “Tucho”, por sua semelhança com o jogador de futebol argentino Tucho Méndez (1923-1998). Ao longo de sua trajetória, o religioso dirigiu e fundou instituições de ensino cristãs, como o Instituto Diocesano de Formação Laical em Rio Cuarto.
Considerado um teólogo de sólida formação, lecionou e ocupou diversos cargos em instituições católicas argentinas, chegando a ser o decano da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina, diretor da revista “Teología” e presidente da Sociedade Argentina de Teologia.
Mas mesmo sua ascensão na igreja não fez dele alguém com postura completamente condescendente à instituição. Além de sua visão pastoral aberta, do tipo que costuma encarar temas morais dentro de um contexto contemporâneo, Fernández já comprou polêmicas com a elite católica ao afirmar, por exemplo, que a Cúria Romana não é “parte essencial da missão da igreja” e que “os cardeais poderiam desaparecer”.
Ironicamente, ao ser alçado a um cargo tão importante, ele próprio deve logo se tornar um cardeal, caso prevaleça a lógica nas próximas nomeações de Francisco. Também ironicamente, Fernández já chegou a ser objeto de inquisição do órgão que ele presidirá a partir de setembro. Isso ocorreu entre 2009 e 2011, logo após ter sido indicado pelo então cardeal Jorge Bergoglio como novo reitor da Universidade Católica Argentina. De forma anônima, setores ultraconservadores da igreja remeteram queixas ao organismo do Vaticano, baseadas em conteúdos de artigos de sua autoria, considerados modernos demais.
Para os conservadores, as críticas são de que ele seria muito aberto à temática LGBTQIA+ e ao acolhimento de casais em segunda união, entre outros temas efervescentes dentro da moral católica. Ele também já se posicionou fortemente contra a ditadura militar vivida na Argentina, entre 1976 e 1983.
Em sua gestão, de 2009 a 2018, a universidade realizou trabalhos em favelas de Buenos Aires e um congresso para debater a doutrina social da igreja. Também são de seu período à frente da instituição a criação da Faculdade de Ciências Sociais e de um centro de pesquisas sobre dependência química.
Fato é que a amizade cultivada desde os anos 1990 com Bergoglio renderia mais frutos. Em 2013, o já papa Francisco fez de Fernández arcebispo. A proximidade o tornou um grande colaborador nos textos assinados pelo pontífice. Especialistas afirmam que ele é o principal ghost-writer do papa, tendo contribuído para a redação de exortações apostólicas como a “Evangelii Gaudium” e a “Amoris Laetitia”.
Um vaticanista ouvido pela Folha comentou que essa relação próxima suscita críticas em determinadas alas do Vaticano. Em seu artigo no diário La Croix International, o vaticanista Mickens defende que, ao levar um “aliado importante” para “um dos escritórios mais importantes do Vaticano”, Francisco ganha “um grande impulso” na operação de “limpar a oposição interna às suas reformas eclesiais”.
Para o professor Moraes, por outro lado, o fato de estar “nomeando um amigo não suscita nenhuma complicação nem fere princípios éticos”. “Vejo um alinhamento de pensamento, de conduta, de atitudes. A visão mais pastoral de Francisco exigia alguém com esse perfil na Doutrina da Fé.”