Música dos campos da morte ganha vida
Nos registros visuais que ficaram dos campos de concentração e extermínio nazistas, há sempre imagens de horror, com pessoas em corpos cadavéricos e câmaras de gás
- Data: 16/11/2019 10:11
- Alterado: 16/11/2019 10:11
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Crédito:Divulgação
É difícil pensar que ali também havia música. E é ela que o maestro italiano Francesco Lotoro vem revelando há cerca de 30 anos.
Em um papel meio de músico, meio de arqueólogo, Lotoro viaja o mundo para encontrar essa música nos lugares mais diversos, como casas de judeus sobreviventes, comunidades ciganas, memoriais e acervos públicos. Às vezes, ele a encontra escrita a carvão em pedaços de papel higiênico, às vezes, ela está apenas na memória de quem a criou.
Com elas, o maestro encontra histórias como a do compositor checo Rudolf Karel. Membro da resistência checa, acabou preso em Praga em 1943. Karel foi enviado a Terezín, um lugar usado como ponto de trânsito para o campo de Auschwitz e também um “campo modelo” dos nazistas, onde um pouco de arte era tolerada.
Doente, escreveu uma ópera com o carvão medicinal que lhe era dado para tratar disenteria nas duas horas diárias em que era autorizado a ficar na enfermaria. Um soldado checo amigo da família Karel ajudou a camuflar o trabalho do músico, até ser descoberto pela Gestapo em 1945. Karel morreu em Terezín meses depois.
Essas e outras histórias são relatadas no documentário O Maestro de Alexandre Valenti. Uma delas foi descoberta no Brasil, quando o maestro se encontrou em 2015 com a polonesa Bela Lustman, de 88 anos, sobrevivente do Holocausto e residente no Rio de Janeiro. No encontro, Lotoro acompanhou Lustman ao piano na canção que ela compôs aos 14 anos quando era prisioneira do campo de trabalhos forçados de Pachnik, na antiga Checoslováquia. A polonesa relatou ter composto a canção com duas amigas, falando sobre as condições em que viviam naqueles dias. Às amigas só restava cantar escondido e memorizar a letra para que não fossem descobertas. E assim a música ficou guardada por décadas.
“Fiquei muito feliz em acompanhar a voz de Bela ao piano”, disse o maestro, em entrevista ao Estado, sobre a rara experiência de poder conhecer um compositor dos campos nazistas e poder executar sua música em sua companhia. Segundo o maestro, na maioria das vezes, ele chega tarde demais. Por isso, corre contra o tempo e viaja pelo mundo atrás das pesquisas mais urgentes. A maioria da geração de músicos sobreviventes dos campos já morreu. Os sobreviventes de hoje tinham 11, 12 ou 13 anos na época da guerra.
“Em muitos casos, são filhos, netos, sobrinhos os responsáveis em guardar os manuscritos, anotações, gravações”, diz o músico-detetive, que tenta manter vivo seu projeto “100 viagens” na busca por essas músicas. Em um dos esforços para financiar o projeto, Lotoro apresentará em São Paulo um concerto com as músicas recuperadas, O Maestro – Em Busca da Última Música, com a Orquestra Jazz Sinfônica. O evento, promovido pela ONG KKL Brasil, ocorrerá no Memorial da América Latina, no dia 21. O concerto marca o início das celebrações dos 75 anos da libertação dos campos de concentração da 2.ª Guerra.
O maestro explica que seu trabalho não se restringe aos judeus. Ele abrange toda a música escrita e composta entre o início da Alemanha nazista, em 1933, até a morte de Josef Stalin, em 1953, nos campos de concentração e extermínio nazistas e gulags, feitas também por cristãos, ciganos, homossexuais, perseguidos pelos regimes autoritários.
Em sua pesquisa, o maestro encontrou os mais diferentes perfis e formações, alguns compositores profissionais e líderes de bandas outros pianistas de cabarés ou músicos religiosos. Experiências diferentes que tinham em comum as músicas sobre os campos onde estiveram aprisionados, e muitas vezes morreram.
“Havia um caleidoscópio de experiências e linguagens”, conta. Até chegar a essa música, explica, é preciso ir a fundo nos fatos sobre seu compositor, se foi deportado, se sobreviveu ou morreu nos campos. “Mas no momento em que estou tocando, é preciso ser apenas o músico. A canção não precisa de todo o histórico da Shoah (termo hebraico para o Holocausto). É preciso se aproximar dela como fizeram os grandes compositores”, diz, afirmando que sua preocupação é fazer o que aqueles compositores sonharam: tirar sua música dos campos