Milei cobra fidelidade em carta a diplomatas e cria clima de caça às bruxas
Para alguns, é um cenário que faz lembrar o que Jair Bolsonaro (PL) imprimiu no Ministério das Relações Exteriores do Brasil em sua Presidência
- Data: 24/10/2024 10:10
- Alterado: 24/10/2024 10:10
- Autor: Redação
- Fonte: MAYARA PAIXÃO - Folhapress
Javier Milei
Crédito:Reprodução/X
Com palavras que no papel podiam até ser elegantes, mas na prática desmascararam um clima de caça às bruxas que se instaurou na diplomacia da Argentina, o presidente Javier Milei passou a cobrar dos membros do serviço diplomático lealdade às suas ideias pessoais.
“Quem não estiver em condições de assumir os desafios impostos pela defesa das ideias de liberdade deve dar ‘um passo para o lado'”, disse ele em uma carta encaminhada por email a todos os membros da chancelaria. Trocando em miúdos: afastem-se.
A reportagem teve acesso à carta, enviada no último dia 18 e inicialmente revelada por jornais locais. O documento disparou um clima de perseguição e estresse entre o corpo diplomático argentino, no qual muitos dos diplomatas afirmam se sentir preocupados e pisando em ovos.
Para alguns, é um cenário que faz lembrar o que Jair Bolsonaro (PL) imprimiu no Ministério das Relações Exteriores do Brasil em sua Presidência. Ainda assim, mesmo que tenha colocado alguns diplomatas na geladeira e ideologizado a pasta, o ex-presidente não enviou comandos claros como este de Milei.
O episódio da carta causou surpresa e vem na esteira de mudanças constantes na chancelaria argentina, a cargo de Diana Mondino, e que podem ser sentidas inclusive no trato com a imprensa, com diplomatas mais receosos em falar, mesmo que no tradicional “off the record”, jargão jornalístico que se refere a quando um entrevistado compartilha informações sem expor sua identidade.
Indicados da Casa Rosada têm sido introduzidos em postos-chaves da chancelaria. Ainda que aliada de primeira hora de Milei, Mondino, que também é economista, havia elevado diplomatas de carreira para os principais cargos, sem indicações políticas. Não durou muito.
Na carta aos diplomatas, o argentino diz que, como expôs em sua intervenção na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, no mês passado, “a Agenda 2030 não é nada mais que um programa supranacional de governo de corte socialista que pretende resolver os problemas com soluções que vão contra a soberania dos Estados e violam o direito à vida, à liberdade e à propriedade das pessoas”.
Essa cartilha global com planos para um mundo mais sustentável, como igualdade de gênero e redução da pobreza, vem sendo alvo preferencial da diplomacia de Milei, em um aceno à sua base ultraliberal em momentos de popularidade cambaleante.
Isso ficou claro, por exemplo, na última cúpula do Mercosul, realizada no Paraguai. Milei não foi, mas em seu lugar a diplomacia argentina vetou todo e qualquer texto que falasse de justiça social e igualdade para as mulheres, temas quase consensuais até então. O Brasil fez frente e reclamou na ocasião.
Antes, também nos corredores da OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington, a diplomacia argentina se esquivou de quaisquer declarações sobre o tema e tentou derrubá-las.
Milei segue na carta: “Devem ser valorizadas ideias que dizem que todos os cidadãos nascem livres e iguais na lei, que temos direitos inalienáveis outorgados pelo criador: à vida, à liberdade e à propriedade”.
Então, dá a palavra final ao dizer que se retire quem não está de acordo.
“Essa nova doutrina implica que nenhum funcionário dessa administração nem quem representa a Argentina no exterior deve acompanhar projetos, declarações ou resoluções que estabeleçam violações ao direito à vida, à liberdade e à propriedade.”
O mais recente conflito envolvendo Buenos Aires se deu em uma das reuniões preparatórias para o G20, em Brasília. O grupo aprovou um texto sobre equidade para as mulheres que, em linhas gerais, reconhecia que meninas e mulheres têm barreiras adicionais na sociedade e que é preciso promover equidade. A Argentina foi o único país a pular do barco.
Milei enviou uma carta ao presidente Lula (PT) há algumas semanas na qual confirma que irá à cúpula do G20 no Rio de Janeiro em novembro, acabando com as dúvidas sobre um possível encontro entre os dois líderes, que não têm boa relação. O argentino disse que irá para contribuir. O caráter da contribuição será visto no próximo mês.