Kazuo Ishiguro por Silvia Mara Tellini
Prêmio Nobel de Literatura, Kazuo Ishiguro articula em sua simplicidade estética uma ética complexa, analisa Silvia Mara Tellini, doutoranda na Unesp de São José do Rio Preto
- Data: 11/10/2017 14:10
- Alterado: 16/08/2023 02:08
- Autor: Redação
- Fonte: Silvia Mara Tellini
Kazuo Ishiguro
Crédito:Reprodução
Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasaki, no Japão, em 1954, porém aos cinco anos de idade mudou-se com a família para Guilford, na Inglaterra, devido a uma oportunidade de emprego que seu pai, um oceanógrafo, conseguiu junto ao governo britânico. Foi criado em um ambiente familiar onde costumes japoneses eram privilegiados, enquanto vivenciava outra realidade no sistema educacional britânico. O escritor possui uma facilidade especial em se deslocar entre universos lingüísticos e culturais diversos, já que foi criado em uma encruzilhada cultural.
Sua obra foi traduzida para mais de 30 idiomas diferentes, número que tende a subir com a premiação do Nobel de literatura 2017. Seus romances já haviam sido nomeados para diversos prêmios importantes, como o “Booker Prize”. Embora seu trabalho tenha sido influenciado pelo cânone ocidental, o autor já escreveu romances que se localizam no Japão e na China. Também se dedicou a contos, bem como roteiros de filmes e televisão, inclusive ao filme “The White Countess” de James Ivory, lançado em 2015. Além disso, Ishiguro já escreveu letras de música para cantoras como Stacey Kent, algo que tem sido sua paixão deste antes de se iniciar na prosa romanesca. Nesta área ele dá continuidade à exploração estética de conceitos complexos como deslocamento e desabrigo. No centro de suas narrativas, personagens criam sentidos para um mundo inexoravelmente avesso às suas cegueiras e ilusões, que fazem parte de da falibilidade humana. Devido às falhas inerentes as suas percepções do mundo, estes personagens dão espaço para o investimento ético e emocional do leitor, que é convidado a responder solidariamente.
Embora seja um escritor da era do pós-Guerra, suas narrativas não seguem aquele tipo de enredo sensacional, repleto de desfechos fantásticos, diferentemente dos romances de alguns contemporâneos como o escritor Ian McEwan, Graham Swift ou Martin Amis. Ishiguro constrói uma arquitetura narrativa da simplicidade e da quietude que penetra nos dilemas éticos. Ele pode ser associado, mesmo que indiretamente, à geração de escritores como J. G. Ballad, Saul Below e Primo Levi, que vivenciaram a violência e agressão desumanizadoras do período entre 1939 a 1945. Seus romances estão contextualizados em episódios de atrocidades e catástrofes do século vinte, como por exemplo, a Segunda Guerra Sino-Japonesa, palco de romances como “Um artista do mundo flutuante” e “Quando éramos órfãos”. Assim como em “Um artista”, “Uma pálida visão dos montes” também traz à reflexão as consequências da destruição de Nagasaki e Hiroshima pela bomba atômica. Em “Os vestígios do dia”, a Segunda Guerra Mundial está tratada pelo viés do fascismo Britânico, carregando uma crítica aos perigos da celebração de valores que supostamente traduziriam o significado do que é ser verdadeiramente inglês, ao se seguir morais rígidas ao estilo dos valores vitorianos, que conduzem um sistema social hierárquico
Deste modo, Ishiguro explora questões envolvendo classes, etnia, nação, pertencimento e moralidade, bem como questões estéticas. Em seu romance “Não me abandone já mais”, a questão da representação artística está posta para as crianças- clone do internato “Hailsham” na forma como elas são estimuladas a produzirem pinturas e desenhos que deveriam ficar na “Galeria”. Segundo a diretora, as produções são utilizadas com o propósito de provar a existência de uma “alma” inata aos clones semelhante à dos humanos, ao passo que as crianças acreditam que suas coleções artísticas podem redimi-las da morte iminente, permitindo que elas tenham o adiamento no processo de doação de órgãos que as levará à morte prematura.
Ao posicionar os protagonistas em áreas de conflitos recontando suas memórias fragmentárias e turvas, Ishiguro dá a possibilidade de vislumbrarmos a sociedade de uma perspectiva singular, observando a transformação de valores, e as consequências profundas para os personagens que já não encontram mais abrigo na segurança imaginária de um mundo racional positivista. Do mesmo modo, suas obras possuem a capacidade de oferecer um vislumbre na subjetividade e instabilidade interpretativa do leitor ao inventar uma técnica de narrar caracterizada por não oferecer muitos detalhes e por deslocar o movimento e as ações para os bastidores das cenas, exigindo de nós uma escuta do que se passa no espaço silencioso das entrelinhas.
Portanto, há uma instabilidade e desconfiança provocadas na interpretação do leitor que se depara com espaços movediços e digressões temporais vertiginosas, onde está borrado o delineamento claro entre a fantasia psíquica e o mundo externo, entre o fato e as versões, entre o que é passado e o que é presente. Ishiguro trabalha na narrativa a presentificação do passado através da memória, atualizando-o pela observação de narradores em posições que flutuam desancoradas no mundo em transformação, em outras palavras, personagens que revelam suas identidades pela alteridade, pois estão deslocados de suas pátrias ou lares, são estrangeiros ao outro e a si mesmos. Portanto, há também uma preocupação em entender como o jogo de poder demarca a exclusão e a diferença.
Em última instância, pode-se dizer que está latente nas narrativas de Ishiguro a presença de personagens que buscam dar sentido a um mundo sem sentido, através da busca em vão de coerência e continuidade em suas estórias. O comitê do Prêmio Nobel se referiu a esta característica como a capacidade humana de se auto-iludir, expressas pelos narradores enquanto vivenciam as descontinuidades e incongruências de seus mundos. Percebe-se a inserção memória em uma rede de entrelaçamento entre diferentes contextos vividos no coletivo, de onde emerge a individuação, que reanima o passado através dessa composição descontinuada e com contornos borrados. Ishiguro possui a capacidade de explorar as identidades construídas nesse limiar entre a memória coletiva e individual, entre esquecimento e lembrança que são usadas como mecanismos de sobrevivência e de renegociação com o passado em palcos de conflitos.