INTIMIDAÇÃO EM SANTOS: Colega da Corte diz que desembargador é “um sujeito desprezível”

Desembargador que chamou guarda de “analfabeto” ao ser multado por estar sem máscara já foi alvo de representação por gritos contra magistrada do TJ-SP

  • Data: 20/07/2020 20:07
  • Alterado: 20/07/2020 20:07
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Estadão Conteúdo
INTIMIDAÇÃO EM SANTOS: Colega da Corte diz que desembargador é “um sujeito desprezível”

Desembargador chama guarda de 'analfabeto' e rasga multa por não usar máscara

Crédito:Divulgação

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O desembargador Eduardo Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, é alvo de pedido de providências na Corregedoria Nacional de Justiça por ter humilhado um guarda municipal em Santos após ser multado por não utilizar máscara de proteção contra o novo coronavírus. No entanto, não é a primeira vez que que a conduta do magistrado é questionada, tendo sido alvo de representação de uma outra integrante do TJ-SP, a desembargadora Maria Lúcia Pizzoti. Ela chama o colega da Corte de “um sujeito desprezível”.

Maria Lúcia foi a vigésima juíza do Judiciário paulista, tendo atuado por anos como a única magistrada em Santos. Ela conta que no início da carreira, trabalhava em uma sala em frente à de Siqueira.

Diuturnamente eu ouvia os gritos dele, era uma coisa constante. Ele sempre gostou dessa situação que se evidenciou muito no episódio do sábado de se colocar num degrau acima. Ele realmente acredita que esta a um degrau acima do cidadão comum. Ele achava que porque era juiz ele tinha o direito de humilhar as pessoas”, afirma Maria Lúcia.

No sábado, 18, Eduardo Siqueira foi flagrado sem máscara caminhando na orla de Santos. Ao ser abordado pela Guarda Municipal, ameaçou jogar multa “na cara” dos oficiais, chamou um dos GCMs de “analfabeto” e chegou a ligar para o Secretário de Segurança Pública do município, Sérgio Del Bel, para tentar intimidar os guardas. O magistrado ainda disse que os oficiais “não tinham autoridade nenhuma”, rasgou a multa que recebeu, jogando-a no chão, e afirmou: “O senhor sabe ler? Então leia bem com quem o senhor está se metendo”.

Maria Lúcia defende que atos como o de Siqueira são exceção no Judiciário e que tais condutas devem ser punidas. “Pessoas desse tipo, se elas não são coibidas, elas simplesmente continuam, porque elas acreditam que elas têm que ser assim. É um sujeito que não tem medida, ele realmente acredita que ele tem que usar do poder dele de forma abusiva como ele fez com aquele pobre agente municipal. Veja, ali ele cometeu, em tese, tráfico de influência, injúria, desacato a autoridade e abuso de autoridade. São crimes graves, fora as infrações administrativas”, afirma.

A magistrada relata que por duas ocasiões chegou a questionar formalmente a conduta do desembargador. O questionamento mais recente ocorreu em 2012, quando integrava os quadros da 2ª instância do TJ-SP, durante a presidência de Ivan Sartori, e apresentou representação administrativa contra Siqueira.

Maria Lúcia conta que o episódio que motivou a representação ocorreu quando voltava de julgamento, ao lado de colegas da 24ª Câmara da corte paulista, e ingressava na garagem do prédio em que estão localizados os gabinetes dos magistrados. Em tal momento, o desembargador Eduardo Siqueira deixava o edifício, em um carro oficial com o vidro aberto.

A magistrada conta que ao identificar Siqueira para um de seus colegas, por conta de uma menção ao magistrado feita durante a conversa, minutos antes, o carro em que o desembargador estava deu ré e o mesmo abriu a porta.

Segundo ofício enviado à presidência da corte à época, Siqueira disse, “em alto tom de voz”: “Está falando de mim?”. Maria Lúcia respondeu: ”Não lhe conheço”. A desembargadora conta que o magistrado seguiu andando em sua direção, gritando.

Diante de minha resposta, ainda mais nervoso, e mantendo o alto tom de voz, o que se dava na presença de todos os colegas referidos e mais de 10 funcionários da garagem, ele bradou: “Se está falando de mim, fale na minha cara”. Ainda na vã tentativa de encerrar o lastimável episódio, tornei a dizer: “Não falo de quem eu não conheço”. E foi neste momento em que, de forma chocante e surpreendente, o referido desembargador, gritando na frente de todos, afirmou: “Você não presta”, segue o relato do ofício enviado a Sartori na época.

A desembargadora Maria Lúcia seguiu em seu relato: “justamente para evitar um mal maior naquele momento e totalmente perplexa pela agressão verbal que acabava de me vitimar, optei por ficar em silêncio e apenas ficar olhando estática para ele, até porque a situação era de fato agressiva, grosseira e latente, o que me fez temer até uma possível reação física da parte daquele agressor verbal, por isso optei por estagnar-me. Como ele não parava de insistir no mesmo ponto, embora todos os colegas tenham ficado, de fato, estarrecidos e sem reação, o Des. Salles Vieira acabou por dizer ao Siqueira: “Acho melhor você ir pra casa”, quando, então, ele entrou no carro oficial e se foi

O caso acabou levando a magistrada a apresentar representação contra o desembargador – contendo inclusive a gravação do episódio – junto à Presidência do TJ-SP, que atua como corregedoria em episódios envolvendo os magistrados de 2º grau. No entanto, segundo Maria Lúcia, o procedimento acabou sendo arquivado logo após oitiva de Siqueira.

Tal caso não foi o único envolvendo a Maria Lúcia e Siqueira. A magistrada relata ainda que processou o desembargador por injúria e difamação. A motivação do procedimento foram alegações que Siqueira, então juiz, fez com relação à Maria Lúcia, na época juíza substituta em Santos, em fase de vitaliciamento.

Segundo a magistrada, depoimento do juiz à corregedoria à época “atribulou” seu processo para permanecer na justiça estadual, sendo que “não havia fato concreto”. A questão também chegou a ser mencionada no ofício enviado a Sartori, ocasião na qual a desembargadora diz que no início de sua carreira “foi profundamente ofendida em sua honra, pessoal e funcional”.

O relator do caso na corte paulista chegou a extinguir liminarmente o processo, sob o entendimento de que testemunhas não praticam caso de injúria ou difamação ao depor. A magistrada recorreu e conseguiu dar seguimento ao processo. O caso chegou a ir para o Superior Tribunal de Justiça, mas houve decadência.

Nos bastidores, há diferentes histórias envolvendo a conduta de Siqueira, algumas mencionando gritos e humilhações com funcionários. Uma delas se refere a uma copeira da Justiça em Santos por causa de um suco de morango.

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS

Ao instaurar o pedido de providências contra Eduardo Siqueira, o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, apontou que os fastos envolvendo o desembargador podem caracterizar conduta que infringe os deveres dos magistrados estabelecidos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) e no Código de Ética da Magistratura.

A Loman prevê, entre os deveres do magistrado, a “urbanidade” e a manutenção de “conduta irrepreensível na vida pública e particular”, além de vedar ao magistrado “procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções”. As indicações também estão dispostas no Código de Ética da Magistratura.

O Tribunal de Justiça de São Paulo também havia determinado a abertura de apuração sobre o ocorrido, mas Humberto Martins determinou que o caso fosse retirado da presidência da corte paulista para que não houvesse duplicidade de procedimentos. Na decisão o ministro citou “enorme desgaste do judiciário”.

Segundo Maria Lúcia, o CNJ “avocou o expediente administrativo”, uma vez que a lei dispõe que o órgão tem atuação quando há omissão dos tribunais. “Foi uma opção”, diz. A desembargadora afirma ainda que a medida não era “necessária”, mas opina que a mesma pode ter se dado para retirar o “processo do ambiente o investigado está”.

Após a investigação, caso a Corregedoria encontre indícios de infração de conduta, há dois tipos de punições possíveis para os desembargadores – disponibilidade e aposentadoria compulsória. A primeira seria algo que pode ser revertido, ficando o magistrado afastado da corte, recebendo salário. Já a segunda implica a saída do desembargador dos quadros do tribunal, mas também recebendo um valor de aposentadoria.

Caso encontre prática de crimes na conduta do desembargador, o CNJ pode ainda encaminhar o caso para o Ministério Público Federal. Isso não impede ainda a Procuradoria de instaurar uma investigação própria sobre o caso. A Procuradoria-Geral da República informou à reportagem que por hora não há nenhuma investigação criminal contra o magistrado no órgão.

PUNIÇÃO PENAL DEPENDE DAS APURAÇÕES, OPINAM JURISTAS

Apesar da iniciativa do CNJ e da presidência do TJ-SP, entidades como o sindicato servidores estatutários de Santos viram prática de crime pelo desembargador ao ofender funcionário responsável pela fiscalização. Advogados ouvidos pelo Estadão analisaram algumas hipóteses, apontando que qualquer punição de natureza penal ainda depende de uma investigação mais profunda dos fatos.

De acordo com o advogado criminalista André Damiani, especialista em Direito Penal Econômico, as condutas observadas nas imagens não configuram abuso de autoridade, apesar de inaceitáveis “do ponto de vista moral e cívico”.

Segundo a Lei de Abuso de Autoridade comete crime quem utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido, o que não se verificou. Isso porque, conforme demonstra o vídeo, em nenhum momento o magistrado invocou sua posição para se eximir do cumprimento da lei, mas, sim, argumentou que o decreto municipal não teria força impositiva suficiente para obrigar os cidadãos a usarem máscara ao afirmar que “decreto não é lei”. Em que pese a argumentação seja pífia sob a ótica jurídica, não é bastante para configura o crime em questão”, disse Damiani.

Para o advogado Conrado Gontijo, doutor em Direito Penal e Econômico, os fatos precisarão ser mais bem avaliados e apurados, para que se verifique se foi praticado alguma ilegalidade. Segundo Gontijo, é possível que se cogite a prática de crime contra a honra, em razão dos dizeres ofensivos ao guarda municipal, além de ser possível, hipoteticamente, que se fale na prática do crime de abuso de autoridade.

Nesse último caso, ao que parece, o Desembargador tinha o entendimento de que a norma municipal que prevê a obrigatoriedade do uso de máscaras é inconstitucional. Se for esse o cenário, não será possível que se fale na prática do crime de abuso de autoridade, porque não haverá demonstração de que ele agiu com o objetivo de desrespeitar uma norma que ele entendia legitima, mas uma norma que ele reputa inconstitucional. Não haveria o dolo, necessário à configuração da prática delitiva. Entretanto, somente as apurações poderão indicar se, efetivamente, ele deve ser responsabilizado”, explica o advogado, que esclarece, ainda, que tudo dependerá da análise e das apurações.

Por outro lado, no que diz respeito a uma possível imputação de crime de desacato, Damiani aponta que existem elementos que permitem a caracterização do delito. “A postura ostensiva e ofensiva do desembargador ao rasgar a multa e xingar o guarda municipal de analfabeto, pode sim configurar o crime de desacato previsto no Código Penal. Isso porque existem meios próprios para o cidadão recorrer da multa ou advertência administrativa que entender indevida, os quais não permitem e, muito menos, autorizam a ofensa endereçada ao funcionário público no regular exercício de sua função.”

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