Gestão Nunes gasta R$ 2 bi sem licitação para concretar córregos e ignora obras estruturais
Apenas 3 das 93 obras do Plano Diretor de Drenagem foram entregues; prefeitura diz que são frentes de trabalho distintas
- Data: 02/03/2024 17:03
- Alterado: 02/03/2024 17:03
- Autor: Redação
- Fonte: Marcos Hermanson e Julia Estanislau/Folhapress
Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB)
Crédito:Marcelo S. Camargo/Governo de SP
De março de 2022 a setembro de 2023, a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras de São Paulo contratou de forma emergencial, sem licitação, oito diferentes obras de concretagem das margens do córrego Rio Verde, na zona leste. Três delas num raio de 620 metros da casa de Eliseu Alcântara, 45.
As obras pararam a 80 metros da ponte que dá acesso à rua onde ele mora. Deixaram um trecho do riacho com as margens desprotegidas e continuaram em outro ponto.
A intervenção estreitou o rio. Com isso, dizem quatro moradores ouvidos pela Folha, o lugar passou a conviver com enchentes. “Perdi sofá, geladeira e outros móveis”, conta Alcântara. “Tomei R$ 6.000 de prejuízo.”
De setembro de 2021 a dezembro de 2023, a gestão Ricardo Nunes (MDB) contratou R$ 2,2 bilhões em 140 obras emergenciais deste tipo, de contenção de margens de córrego. O valor representa 65% de toda a verba empenhada pela prefeitura em obras de combate a enchentes no período, incluindo piscinões licitados nesse período.
Por outro lado, as ações que a própria prefeitura estabelece como estratégicas para combater o problema acabaram recebendo menos atenção – das 93 obras estruturais previstas no PDD (Plano Diretor de Drenagem), apenas três foram entregues até o fim de 2023. O documento define exatamente quais as principais intervenções de combate a cheias na cidade.
As obras entregues são o reservatório Paciência, na zona norte, o polder Aricanduva R3 e o reservatório Taboão, na zona leste. A prefeitura investiu R$ 65 milhões nas três estruturas, o que equivale a 3% do total gasto com as obras emergenciais. As informações foram obtidas via Lei de Acesso à Informação.
Procurada, a prefeitura disse que as obras do PDD e as obras emergenciais fazem parte de frentes de trabalho distintas, que não competem entre si. Sobre as cheias no córrego Rio Verde, afirmou que duas obras ainda estão em andamento e que trabalha para construir um reservatório na região. As empresas B&B Engenharia e BBC Construções, responsáveis pelas três obras mais próximas ao local com alagamento, disseram que o problema das enchentes é antigo.
Além do caso do córrego Rio Verde, pessoas de outras regiões da cidade também apontam problemas semelhantes. É o caso de moradores da rua Botuverá, por onde passa o córrego Água Espraiada, na zona sul. Eles afirmam ter começado a enfrentar enchentes após obras emergenciais.
A Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras do município contratou seis intervenções de contenção de margens no riacho, todas num raio de um quilômetro, mas deixou exposto o trecho que percorre a rua.
Uma dessas obras termina na ponte que fica a poucos passos do bar de Antônio Stochmal, 68. “A rua vira um piscinão”, diz o comerciante. “Esse problema não existia aqui antes da obra”.
Um vídeo gravado em dezembro, após a entrega do empreendimento, mostra uma enchente tomando a esquina das ruas Botuverá e Capuavinha. A água invadiu casas, arrastou caçambas e cobriu carros até a altura do capô.
Três moradores ouvidos pela reportagem relatam que o estreitamento do rio, causado pela colocação das paredes de concreto, fez a água represar na ponte, causando o alagamento.
A secretaria disse que está analisando alternativas para o combate às enchentes na rua Botuverá.
Os R$ 2,2 bilhões gastos em intervenções emergenciais de contenção de margens seriam suficientes para construir ao menos 15 das 56 obras previstas no chamado Plano de Ações do Plano Diretor de Drenagem.
O Plano de Ações reúne a maior parte das obras previstas no PDD – as 37 intervenções restantes são do acervo técnico da Siurb, que não divulga o custo estimado.
As 56 obras têm potencial de reduzir em 4,6 quilômetros quadrados a mancha de alagamento do município, retendo mais de quatro milhões de metros cúbicos de água, segundo a prefeitura.
Uma delas é o Reservatório Carumbé 01, sexto lugar da lista de prioridades do Plano de Ações. Teria 60 mil metros cúbicos de volume e ajudaria a aliviar o impacto das enchentes na Brasilândia, mas não saiu do papel.
“A água chega na altura do joelho”, diz o ajudante-geral Aristides Santos, 33, sobre as enchentes que atingem a favela Nova União, que fica nas margens do córrego Carumbé, a poucos metros de onde seria o piscinão.
“Uma administração séria pegaria o plano diretor e faria licitação para as obras estruturantes”, diz o vereador Celso Gianazzi (Psol), que entrou com representações no TCM pedindo investigação das intervenções da prefeitura.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras disse que o reservatório Carumbé está em fase de planejamento.
GASTO COM OBRAS EMERGENCIAIS É CONCENTRADO EM DEZ CONSTRUTORAS
Na comparação com 2017, o gasto com obras emergenciais aumentou 10.000% em São Paulo. Uma auditoria do TCM (Tribunal de Contas do Município) apontou suspeita de superfaturamento de R$ 67 milhões em 18 dessas intervenções.
A lei autoriza a realização de obras sem licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizado risco à segurança da população.
“A contratação emergencial pode demonstrar falta de planejamento”, diz Alessandro Soares, professor de direito constitucional no Mackenzie. “Além disso, abre margem para sobre-preço e superfaturamento.”
Procurada, a secretaria disse que “as intervenções [nos córregos] são executadas somente no trecho onde há riscos”, atestado por laudos da Defesa Civil, vistorias de técnicos e parecer do procurador do município.
“Não adianta fazer a obra em um ponto específico”, afirma a engenheira Melissa Graciosa, da Universidade Federal do ABC. “É insuficiente, uma medida de curto prazo, e o problema pode piorar rio abaixo.”
“Essas obras têm um apelo eleitoral”, diz Anderson Nakano, urbanista e professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo. “Resolvem o problema de maneira muito pontual, no local onde foram realizadas, e podem piorar a vida de quem não foi atendido”.
Metade das obras emergenciais contratadas pela atual gestão está na zona leste. Das 41 empreiteiras contratadas pela secretaria para as obras emergenciais, dez concentram 63% do valor dos contratos, ou R$ 1,4 bilhão. Algumas guardam vínculos entre si.
É o caso da Mathesis Engenharia, que tem R$ 139 milhões em contratos emergenciais de contenção de córregos. A empresa é de Rogério Franco Palazzi. O irmão de Rogério, Maurício Augusto Palazzi, é dono da Escopo Construtora Limitada, que tem R$ 66 milhões em contratos do tipo.
Também é o caso da B&B Construções e da BBC Construções, que juntas têm R$ 383 milhões em contratos emergenciais para contenção de margens de córrego. Estão sediadas na mesma esquina e têm os mesmos sócios: Walter Luca Braga e Cíntia Cristina Barros, que são um casal.
Em nota, a B&B disse que ambas as empresas estão credenciadas na Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e possuem capacidade técnica comprovada, tendo atuado em obras públicas e privadas por mais de 15 anos. Acrescentou que “a escolha de contratação não cabe a empresa e sim ao órgão que executa o processo licitatório”.
Paulo Gomes Duque, dono da Consitec Engenharia e Tecnologia, é casado com Paula Neri Duque, sócia da Arq Soluções em Serviços. Juntas, as empresas têm R$ 170 milhões em contratos emergenciais.
“Não há vedação legal para contratação de empresas de parentes”, diz Juliana Sakai, da ONG Transparência Brasil, “mas dá para ver que existe uma concentração de empresas e pessoas que estão tendo acesso a esses contratos”.
Procurada para comentar os contratos, a prefeitura disse que a seleção de empresas para execução das obras se dá após uma cotação com três concorrentes, “sendo escolhida aquela que oferece o maior desconto sobre os serviços a serem realizados”. Disse também que os orçamentos seguem a tabela de custos da Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras.
A Construtora Lettieri Cordaro, que pertence ao mesmo sócio da Merola Construções – R$ 57 milhões em contratos emergenciais no total – afirmou em nota que ambas as empresas possuem cadastro ativo junto à secretaria. “Cadastradas, estão passíveis de convites para realização de obras emergenciais, não havendo relação quanto ao grau de parentesco citado e sim com a qualificação técnica da empresa”.
As empresas Arq, Consitec, Mathesis, Escopo, DB Construções e Tirante Construções foram procuradas por email e telefone, mas não responderam até a publicação desta reportagem.