Famílias de mortos pela PM na Baixada fazem investigação contra arquivamentos
Operação Escudo, há um ano, teve baixo uso de câmeras, retirada de corpos e falta de perícia; governo de SP diz que casos são rigorosamente apurados
- Data: 27/07/2024 11:07
- Alterado: 27/07/2024 11:07
- Autor: Redação
- Fonte: Tulio Kruse/Folhapress
Crédito:Reprodução/Polícia Civil de SP
A família de Moacir da Silva Júnior, 34, não sabia, mas assistiu à notícia de sua morte num programa policial na TV antes que se desse conta de seu desaparecimento. No momento em que as primeiras informações sobre o caso foram ao ar, na tarde do dia 31 de julho de 2023, não foi falado o nome do homem morto por policiais do 3º Batalhão de Choque da PM em Guarujá, no litoral paulista.
Havia outro motivo para que sua madrasta, sua irmã e seu pai não tivessem desconfiado de que era ele o retratado no noticiário. O corpo de Júnior foi encontrado próximo ao bairro Sítio Conceiçãozinha, mas ele tinha sido visto pela última vez naquela mesma tarde, minutos antes do horário registrado da ocorrência, e a mais de cinco quilômetros de distância, na Vila Edna, onde a família mora.
A rodovia Piaçaguera-Guarujá, o rio Santo Amaro, a avenida Perimetral e uma ferrovia separam os dois bairros. Segundo a família, ele não tinha motivo para estar no Sítio Conceiçãozinha, como descreve o boletim de ocorrência do caso, nem costumava frequentar esse bairro.
Júnior morreu na primeira semana da Operação Escudo, deflagrada após a morte de um soldado da Rota (Rondas Ostensiva Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM) e que completa um ano neste domingo (28). A ação se tornou uma marca da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) na segurança pública.
Somando-se três operações do gênero que ocorreram na Baixada Santista desde então, chega-se ao saldo oficial de 93 mortos pela polícia. Se considerados todos os casos em que a PM matou nas cidades da região, inclusive quando agentes estavam de folga, foram 110 mortes.
No último mês, o Ministério Público de São Paulo denunciou dois PMs pela primeira morte da Escudo, acusando-os de atirar cinco vezes contra um homem que já estava rendido e apagar gravações de uma câmera de segurança. Um dos réus neste caso é o capitão Marcos Correa de Moraes Verardino, que segundo a Promotoria coordenou a operação em Guarujá.
A morte de Júnior, no entanto, está entre ao menos sete casos em que promotores entenderam não haver provas suficientes contra os policiais militares envolvidos e pediram arquivamento dos inquéritos. A Defensoria Pública, que representa a família dos mortos, apelou à Procuradoria-Geral de Justiça para que as investigações continuem.
Várias circunstâncias prejudicaram a coleta de provas ao longo da operação, a começar pelo fato de que uma minoria de policiais usava câmeras corporais durante as ocorrências. Dois dos três casos denunciados tiveram as gravações dos próprios PMs como principal prova, e a maioria dos casos com pedido de arquivamento não foi filmada.
Assim, o que restou em algumas ocorrências foi a palavra de policiais, testemunhas com medo de dar versões contrárias à oficial –vizinhos que ouviram gritos ou filmaram abordagens que não são relatadas, por exemplo– e perícias consideradas ineficazes pela defesa das famílias.
“O que chama atenção em vários casos é a não preservação dos locais de ocorrência, a repetição dos relatos dos policiais nos boletins, a alegação de que estavam ainda vivos quando foram socorridos por ambulâncias e a retirada dos corpos das cenas dos crimes, impossibilitando a coleta de provas”, diz a defensora pública Fernanda Balera, coordenadora do Núcleo Especializado em Cidadania e Direitos Humanos do órgão estadual. “Há casos em que as únicas provas contra os acusados é a palavra dos policiais, sem que mais nada comprove esses relatos.”
No caso de Moacir da Silva Júnior, a própria família coletou informações na comunidade e revisou os dados do inquérito para entender o que ocorreu. Sua irmã, que pediu para não ter o nome divulgado, conta que ele saiu de casa naquele dia por volta das 15h. O horário da ocorrência registrado pela PM, num endereço a mais de cinco quilômetros de distância, é 15h10.
No boletim, os policiais narraram que viram Júnior no Sítio Conceiçãozinha com uma mochila e “certo volume na cintura”, e que ele correu quando os policiais se aproximaram. Narram que ele entrou num matagal e foi perseguido. Ao ficar sem saída, virou em direção aos policiais e atirou ao menos uma vez, sendo alvejado em seguida.
O corpo foi encontrado no meio da mata, a 290 m da entrada do bairro. Nenhuma cápsula da arma atribuída a Júnior foi encontrada. Nenhum policial se feriu.
Segundo a irmã, ele estava com uma pequena bolsa vermelha que guardava uma Bíblia, um par de óculos e duas fotos. As fotos ela encontrou na rua perto de casa. A bolsa vermelha nunca mais foi vista. A família não reconhece a mochila que foi encontrada ao lado do corpo, onde havia um quilo de maconha, um rádio comunicador, uma faca e uma balança de precisão.
Estão convictos de que ele foi capturado na Vila Edna. A abordagem de um suspeito naquele horário teria sido filmada por um morador. Depois, ele teria sido colocado numa viatura e levado ao matagal onde foi morto, a família sustenta. Júnior já teria sido ameaçado dias antes da morte. Teria chegado com machucados no corpo, relatando à família que foi agredido por PMs.
O inquérito mostra que ele tinha três passagens pelo sistema penitenciário por roubo. Tornou-se pastor na prisão, e há um vídeo dele pregando em cultos dentro de um presídio. Após ser liberado para o regime aberto, conta a família, tinha encontrado rumo na igreja, até que uma ilusão amorosa o fez cair no vício em crack. Não praticava mais roubos nem tinha dinheiro para uma arma de fogo, garantem.
Tiros foram disparados em direções diferentes
Júnior morreu com quatro tiros que atravessaram seu corpo e um de raspão na barriga. A trajetória das balas, descrita em um laudo do IML (Instituto Médico Legal), mostra que três tiros foram disparados de cima para baixo.
Esses tiros o atingiram no pescoço e no peito, pelo lado esquerdo do corpo. Duas balas saíram por trás do ombro direito e no meio das costas. Um deles ficou alojado na região lombar, também no lado direito.
O quarto tiro o atingiu de baixo para cima, trajetória contrária aos outros três. A bala entrou pela perna direita, pouco acima do joelho, e saiu no glúteo esquerdo. Ou seja, o laudo indica que Júnior já estaria caído no solo quando levou o último tiro, o que um dos policiais negou em depoimento.
“Ele não tinha que morrer por estar drogado”, diz o pai, Moacir da Silva, 60. “Todo dia eu choro a morte do meu filho, por quê? Porque ele foi executado sem dever [à Justiça], como vários eu conheço.”
MÃE DE JOVEM MORTO FEZ DILIGÊNCIAS INFORMAIS NA FAVELA
O esforço para encontrar provas no caso de Júnior é o mesmo da auxiliar de serviços gerais Regina Pereira de Oliveira, 52. Seu filho, João Lucas Pereira de Oliveira Muniz, 21, foi um dos últimos mortos pela PM na Operação Verão, em 28 de março deste ano, em São Vicente.
Ela foi à favela Dique do Piçarro para procurar testemunhas. Moradores contaram a ela que o ouviram batendo na porta de uma das casas em desespero e, depois, entrando num dos terrenos em fuga, e que ele estaria rendido com as mãos para o alto quando levou os derradeiros tiros de pistola.
Contaram também que PMs teriam passado por volta da 0h do mesmo dia informando que moradores fora de casa a partir daquele horário correriam risco de vida. Muniz não morava no bairro e não sabia sobre o toque de recolher.
Muniz trabalhava desde os 12 anos numa bicicletaria e prestava serviços a uma oficina de motos. Tinha seu próprio CNPJ.
Segundo a mãe, estava no bairro para visitar o pai doente. Saiu da casa dele de madrugada para buscar um remédio na casa da tia, ela conta. O primeiro tiro teria sido a distância, diz Regina.
A mãe filmou os locais por onde ele teria passado, numa tentativa de reconstituir os fatos. Amigos de seu bairro fizeram uma vaquinha para pagar uma advogada particular para atuar no caso. A família ainda aguardava o envio do laudo sobre a causa da morte, quatro meses após a ocorrência.
Questionada, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que as ocorrências que resultaram em morte durante a operação “são rigorosamente investigadas pela DEIC de Santos e pela Polícia Militar”.
“As denúncias citadas pela reportagem também são alvo de apuração pelas corregedorias das polícias e do Ministério Público”, diz a SSP. A secretaria afirma que, após a operação houve redução nos registros de roubos, furtos, homicídios dolosos e estupros, e que “4.960 infratores foram presos e apreendidos na região, 547 armas de fogo ilegais foram retiradas das ruas”.