A sinfonia de um matemático

Resgatar e preservar a história de vida de um pesquisador é um dos objetivos deste texto especial, que faz parte da série “Perfis ICMC”.

  • Data: 10/01/2022 14:01
  • Alterado: 17/08/2023 10:08
  • Autor: Redação
  • Fonte: ICMC
A sinfonia de um matemático

Os irmãos Vanda e Carlos Biasi moram juntos em uma casa centenária

Crédito:Denise Casatti

Você está em:

Se Sebastian Bach fosse compor uma oferenda musical ao matemático Carlos Biasi – tal como fez em 1747 para o rei Frederico Guilherme II, da Prússia –, provavelmente, o tema da obra seria superação. A trajetória desse professor aposentado do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, pode ser transformada em uma partitura com muitos movimentos em descompasso, os quais são sempre sucedidos pela recuperação da harmonia e do ritmo.

Uma trágica sonata – Era como se a perna direita tivesse ganhado vida própria e não respondesse mais aos comandos do maestro. Naquela tarde de 21 de dezembro de 2010, Biasi foi à sala do matemático Luiz Augusto Ladeira, também professor do ICMC, e depois de uma breve conversa se dirigiu à cantina do Instituto. Quando pediu um café, sentiu a perna direita bambear. Mas ela voltou ao ritmo e Biasi caminhou de volta à sua sala. Porém, uma estranha sensação começou a tomar conta do corpo. Aos poucos, o mal estar foi aumentando.

Na tentativa de fuga, ele desceu as escadas e, ao avistar o professor Pedro Paulo de Magalhães Rios, também matemático, comunicou que não estava se sentindo bem. Ele o levou, andando, até a Unidade Básica de Atendimento à Saúde, localizada nas proximidades, dentro do campus da USP. “Só que a minha pressão estava alta e eu normalmente tenho pressão baixa. Tentaram de tudo no ambulatório, conseguiram controlar a pressão e voltei ao Instituto. Mas não adiantou, eu fui piorando”, lembra-se Biasi.

A desconfortável sensação persistia e pediu ajuda novamente a amigos professores. Dessa vez, foi levado ao hospital 24 horas:

– Eu estava com 65 anos, tinha completado no mesmo mês. Fiquei lá no hospital com o professor Oziride Manzoli Neto, nós somos amigos. E eu percebi que fui perdendo aqui e ali a sensibilidade, foi paralisando.

Em descompasso, os músculos anunciavam a trágica sonata de um Acidente Vascular Cerebral. Naqueles dias que passou internado, recebeu a visita de diversos outros amigos, docentes e funcionários do ICMC e de ex-alunos como Edvaldo Lopes dos Santos, professor do Departamento de Matemática da UFSCar.

– A única coisa é que não me afetou a memória em nada. No dia seguinte que eu estava internado, tentei lembrar o meu CPF, e eu consegui. RG, também. Até quando falei: está mesmo tudo bem.

Aliviado, Biasi constatou que aquela sonata não tinha comprometido a dança dos neurônios. Perder as habilidades de memória, raciocínio e abstração seria como colocar um ponto final na letra de uma música inacabada.

Assim, apesar desse e de outros descompassos, Biasi continua compondo a sinfonia de sua própria vida, um pout pourri eclético que mescla música clássica, popular, blues, rock, pop, modas de viola com matemática pura, física, política, cultura e história. É possível passar horas infinitas conversando com ele porque os assuntos nunca se esgotam. Dele brotam relações inusitadas entre ciência e arte a todo momento. Aos 75 anos, ele mantém, impecável, sua marcante sagacidade.

– O senhor gosta de fazer o que hoje em dia? Escutar música, ler? – pergunto, enquanto tomamos café e comemos pão caseiro na mesa da cozinha da casa em que Biasi mora, em São Carlos.

– Eu penso em matemática – responde ele sem hesitar.

– Continua pensando em matemática?

– Claro!

O professor continua na ativa, publicando artigos científicos em parceria com seus ex-alunos. Um desses trabalhos – Some results on extension of maps and applications – é dedicado à memória de seu orientador no doutorado, Gilberto Francisco Loibel, um dos professores pioneiros do ICMC.

Quanto à música, ela faz parte do dia a dia de Biasi:

– Eu sempre gostei de música, mas música clássica foi a partir dos 30 anos. Por exemplo, agora estou estudando as cantatas de Bach. 

Sentado diante do laptop apoiado sobre a mesa da cozinha, ele aperta o play para que possamos escutar juntos a cantada número um de Bach: Wie schön leuchtet der Morgenstern. Em português, Como brilha maravilhosamente a estrela da manhã.

A irmã de Biasi acompanha a entrevista, que começou na sala e se estendeu até a cozinha no momento em que ela nos convidou para saborear o pão caseiro preparado com carinho para o café da tarde. Formada em Letras pelo Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), no campus da UNESP em São José do Rio Preto, Vanda Biasi é quatro anos mais nova do que o irmão.

Solteiros, os dois moram juntos em uma casa centenária, no centro de São Carlos. Comprada em 1979 pelo professor Biasi, a casa tem paredes externas verde claro, pé direito alto, portas e janelas de madeira em branco gelo, adornadas por vitrais coloridos, e pode ser considerada uma sobrevivente, tal como seu dono.

O voo da fênix – “Tá pegando fogo”, gritava desesperado um dos nove moradores da república Poleiro dos Anjos, em Campinas. Os gritos despertaram o estudante Biasi, que só então percebeu as chamas consumindo o colchão da cama em que estava deitado:

– Eu tinha bebido e dormi com o cigarro na mão! Pegou fogo, e eles jogaram água… Coisa de estudante! 

Aluno da Unicamp, onde ingressou em 1967 na graduação em Engenharia, Biasi abandonou o curso no terceiro ano.

– Eu falei: não é pra mim, isso eu não gosto. Eu gosto de matemática.

Apesar de não ser muito assíduo nas aulas, o estudante se destacava nas disciplinas da área de matemática. Mesmo sem se esforçar, conseguia as melhores notas, era praticamente um autodidata.

– Teve uma prova de Análise Real, e eu gostava muito daquela disciplina. Mas eu fiquei bebendo lá numa república e tal, fui dormir e perdi o horário da prova. Quando eu cheguei à faculdade, o pessoal já estava saindo. Mas o professor Dicesar Lass Fernandez percebeu que eu gostava da matéria. De vez em quando, eu ia à aula e dava alguns palpites. Então, ele me levou para a sala dele, deixou eu fazer a prova lá, e eu tirei 8,5.

Passar a noite bebendo e jogando truco com os amigos nas repúblicas era a rotina para o estudante Biasi. Já no final da graduação, sentia-se um pouco perdido quanto ao futuro e assistia aos colegas da turma serem convidados para permanecerem na Unicamp, se tornarem docentes e fazerem pós-graduação. Até que o professor Irineu Salles Batarce sugeriu que Biasi fizesse mestrado na USP e o trouxe para São Carlos, onde foi apresentado ao professor Gilberto Francisco Loibel, em 1971.

O encontro que selaria o futuro de Biasi aconteceu no prédio do atual Centro de Divulgação Científica e Cultural da USP, na rua Nove de Julho, onde funcionava o Departamento de Matemática naquele tempo. Loibel indicou o professor Mario Rameh Saab para orientar Biasi no mestrado. Assim que ingressou na pós-graduação, em 1972, lembra-se de que tirou 10 na primeira prova da disciplina de Topologia, ministrada por Mario.

Inesperadamente, na metade daquele primeiro ano em São Carlos, Biasi foi convidado, pelos professores Loibel e Luiz Antonio Favaro, para ocupar uma vaga de professor no recém-criado Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos (ICMSC), já que outro matemático, que deveria ocupar aquele cargo, havia desistido. Sem hesitar, Biasi aceitou o desafio: “Sempre dei essa sorte”.

Se foi sorte, acaso ou intervenção divina – como diria a mãe de Biasi – ele nunca saberá. Tão singular quanto a contratação foi o acontecimento de 30 de abril de 1983, marcado para sempre na memória de Biasi. Ele se lembra daquele dia de romaria como se fosse hoje: caminhava de bar em bar, a cada ponto de parada, bebia algumas doses de aguardente. A jornada já se repetia há quase 20 anos e, muitas vezes, não se recordava de como havia voltado para casa.

– Eu apagava. Ia bebendo, bebendo e apagava. Ia embora para casa e não sabia como tinha chegado. Naquela noite, só lembro que me dei conta de que estava em casa quando me vi bebendo água no pote. Nunca tinha me acontecido aquilo: desidratação. Foi a primeira vez. E desidratação por bebida é uma coisa grave, a gente não quer parar de beber água. Aí, meu pai levantou e percebeu que eu não estava bem. 

Pela manhã, o pai levou Biasi à Santa Casa de Misericórdia de São Carlos. Ele ficou um dia internado e o médico de plantão avisou: “Isso aí é coisa séria. Não dá outra vez. Na outra vez não sobrevive”.

– Aí eu tomei a decisão: chega! 

Nunca mais colocou uma gota de álcool na boca. Quatro meses depois, convenceu-se de que, se havia conseguido largar a bebida, seria capaz de abandonar o cigarro. Fumava dois maços por dia.

– As duas primeiras semanas são terríveis, vem aquela vontade de fumar. Era um vício! Tem a nicotina, né? Já a bebida não foi difícil e um mês depois que eu deixei de beber, já comecei a me sentir bem, a engordar. Olha, eu pesava 52 quilos porque muitas vezes não comia. Já no final do ano, eu tinha ganhado sete quilos. Para a minha compleição é bastante. E todo esse esforço tinha também outra razão: eu pretendia fazer pós-doutorado no Rio de Janeiro.

Talvez nada do que tenha acontecido a esse homem franzino, que agora veste um pijama azul claro, tenha sido fruto de sorte, acaso ou intervenção divina. Talvez a matemática tenha salvado Biasi, que parece sempre renascer das cinzas como uma fênix. Talvez seja por isso que um dos filmes prediletos desse matemático chama-se exatamente “O voo da Fênix” (1965).

– No filme, um avião cai no deserto e não tinha condições de se reerguer. O comandante era um alemão com conhecimentos em aeromodelismo que não sabia nada sobre aviões de grande porte. Mas ele dizia: “O princípio é o mesmo! Vamos tentar recuperar esse avião que caiu no deserto!” E ele usou uma régua de cálculo. 

Assim como a sétima arte, a régua de cálculo é outra paixão de Biasi. Ele incentivou muitos alunos a comprarem um desses instrumentos, no tempo em que ainda eram vendidos em papelarias, porque acredita que essa é uma maneira interessante de estimular o raciocínio dos estudantes. Enquanto manipula uma de suas réguas de cálculo, Biasi explica:

– A régua de cálculo só fornece números significativos: quatro, cinco, nove, dois… O aluno tem que saber onde entra a vírgula, a régua não tem vírgula! Então, o aluno aprende ordem de grandeza.

Viagem fantástica – Outro filme que enaltece a régua de cálculo é “Viagem Fantástica”, lembra-se Biasi.

– Eu ainda gosto da primeira versão do filme, eu assisti em 1967. O comandante que está liderando a missão usava uma régua de cálculo para reduzir de tamanho e poder entrar no corpo de um grande físico, para salvar a vida do cientista que tinha sido baleado por um terrorista.

 Como se a vida imitasse a arte, Biasi também vivenciou a experiência de uma viagem fantástica no início de 1972, antes de começar o mestrado em São Carlos. No fim do ano anterior, quando estava finalizando a graduação em Campinas, os colegas de turma o convidaram para participar da I Escola de Álgebra, que aconteceu na Universidade de Brasília (UnB), na capital federal do país, em janeiro e fevereiro de 1972. Coordenada pelo professor Adilson Gonçalves, da UnB, a escola propiciou apoio financeiro aos estudantes para que pudessem pagar as despesas de estadia e alimentação durante o evento.

– Eu fui a Brasília e caí nas graças do professor Adilson porque eu fiz uma prova de Álgebra Linear, e tirei 9,4! Ele disse: “Se você quiser vir fazer mestrado aqui, você tem bolsa e, além disso, tem monitoria”. Eu respondi que estava esperando o resultado da bolsa que tinha solicitado aqui em São Carlos. Quando veio a confirmação da USP, decidi vir para cá, porque era mais próximo de São José do Rio Preto, onde meus pais moravam. 

O que Biasi não imaginava era que, ao final da viagem, ele teria uma fantástica surpresa:

– O Adilson reuniu a turma e falou: “Olha, eu contava com certo número de participantes, mas só veio metade. Vieram recursos do CNPq para custear as despesas dos participantes e não há forma de devolver esse dinheiro. Não tem jeito, e eu não quero ficar com isso. Então, vou fazer o seguinte: dividir entre os participantes.”

Os palestrantes receberam três mil cruzeiros adicionais e os estudantes, mil cruzeiros. Biasi revela que o valor era equivalente a três salários mínimos daquela época.

– Cheguei em casa, olhei para minha mãe e disse: “Olha a mala!”. A minha mãe pegou aquele dinheiro, e não parava de contar, ela não acreditava. Meus pais usaram a metade para pagar dívidas, eles tinham feito grandes sacrifícios para me manter estudando em Campinas. Enquanto o restante minha mãe me deu para que eu pudesse vir morar em São Carlos e começar a pós-graduação.

Nascido em Mira Estrela, no tempo em que o local ainda era um povoado de Votuporanga, Biasi recorda-se dos primeiros anos da infância na casa com paredes de barro e telhas italianas, onde morava com os pais em um rancho de cerca de cinco alqueires. Chegou a acompanhar a mãe em suas idas à roça para levar marmita ao pai. O sonho do casal era dar uma formação aos filhos, já que os dois sequer tinham conseguido finalizar o ensino básico. Quando a dor no nervo ciático começou a apertar, o pai decidiu parar de trabalhar na lavoura. Com o pouco dinheiro da venda do sítio, conseguiu construir uma casa em um loteamento novo na cidade de São José do Rio Preto, no Parque Industrial.

– Ele fez a casinha e começou a trabalhar como pedreiro. Depois, trocou a casa por outra, mas até meus 8 anos de idade não tinha nem água nem luz. Só nessa outra casa que conseguiram colocar energia elétrica e havia um poço, de onde minha mãe tirava a água. Aí o meu pai falou para ela: “Se nós pretendemos formar nossos filhos, então, alguma coisa tem que mudar, porque se eu continuar como pedreiro aqui não vai dar. Vamos fazer o seguinte: vender essa casa, que surgiu uma proposta, e eu vou começar um negócio.”

Foi assim que o pai de Biasi se tornou comerciante: comprava um bar decadente, reformava e transformava o lugar em uma pequena mercearia.

– Ele fazia o que podia para tentar sobreviver. Tinha muitos irmãos, então, teve que se virar. Foi pedreiro, ajudante de topógrafo e marceneiro. Ele não se entregava. 

Foi assim que a família conseguiu formar os três filhos na faculdade: a irmã que era oito anos mais nova que Biasi, já falecida, também era matemática e professora universitária. Assim, o pai estava mais do que satisfeito com as conquistas e, quando Biasi começou a receber sua bolsa de mestrado, ele já não precisava enviar dinheiro ao filho, que ainda conseguia ajudar com as despesas da casa porque, naquela época, o valor de uma bolsa de mestrado era razoável.

– Então, quando eu fui contratado como professor assistente e cheguei em casa feliz com o meu primeiro holerite, meu pai perguntou: “Quanto você vai ganhar lá?”. Eu mostrei o holerite e ele não se conformava: “O quê? Devolva! Devolva isso!”

Biasi se diverte lembrando da cena cômica do pai mandando ele devolver o dinheiro. Para ele, realmente era muito dinheiro, mais do que imaginava que um professor poderia ganhar. A questão é que, quando Biasi foi contratado pelo ICMC em 1972, fazia pouco tempo que o governador de São Paulo, Laudo Natel, havia concedido um aumento relevante a todos os professores, os quais estavam há algum tempo com os salários defasados.

A paixão pela música é também uma herança que o pai de Biasi deixou aos filhos. Vanda se lembra de que o pai mantinha o rádio ligado o dia inteiro, tal como ela ainda faz hoje. Não é por coincidência que a vida de Biasi sempre foi e será uma sinfonia.

Compartilhar:

  • Data: 10/01/2022 02:01
  • Alterado:17/08/2023 10:08
  • Autor: Redação
  • Fonte: ICMC









Copyright © 2024 - Portal ABC do ABC - Todos os direitos reservados