Como brasileiros em Hollywood apostam em produções de teor social para lucrar
Produtoras e diretores alocados na Califórnia miram em narrativas indígenas, ambientais e queer em busca de destaque
- Data: 08/10/2024 14:10
- Alterado: 08/10/2024 14:10
- Autor: Redação
- Fonte: Rodrigo Salem/Folhapress
Cena do filme 'Guerreiros do Basquete', dirigido por Sydney Freeland
Crédito:Lewis Jacobs/Divulgação
“Quem lacra, não lucra”, é o que dizem conservadores para massacrar filmes protagonizados por minorias que fracassam nas bilheterias. Os ataques surgem independentemente do contexto de mercado e alheios a sucessos que desmentem a teoria – como mostram alguns brasileiros, de executivos a diretores, que estão usando conteúdo de impacto social para invadir e mudar Hollywood neste ano.
É o caso de “Guerreiros do Basquete”, que chegou à Netflix no final de setembro. Produzido pelo brasileiro Maurício Mota, que mora em Los Angeles desde 2012 e já tem a série “East Los High” no currículo, a obra é um marco por ser o maior orçamento de um longa dirigido, produzido, escrito e protagonizado por nativos americanos, com US$ 32 milhões.
“É uma questão histórica. Fazer um filme deste tamanho com lançamento global, sem nenhuma estrela de Hollywood é um motivo de orgulho como produtor brasileiro”, diz Mota. O brasileiro foi procurado pela ativista Crystal Echo Hawk que buscava mudar a percepção das pessoas sobre os indígenas americanos, e descobriu o “rez ball”, o basquete jogado nas reservas que segue as regras do esporte tradicional, mas mais rápido, com estratégias inspiradas em caçadas.
Oito anos atrás, apresentou o projeto para uma das maiores agências de Hollywood. “Adoraram o tema, mas me ofereceram dez roteiristas brancos. Recusei e falei que o filme não seria um ‘Jogando com Lobos’”, brinca Mota, fazendo referência a “Dança com Lobos”, em que o personagem de Kevin Costner firma laços com um povo indígena.
A perseverança deu resultados quando Jodi Archambault, uma das principais responsáveis pela política de assuntos indígenas do presidente Barack Obama, gostou do projeto e bancou o financiamento inicial para o desenvolvimento. “Cresci na reserva Pine Ridge, em Dakota do Sul e joguei ‘rez ball’ no colegial. Desde o início, nosso objetivo era proteger as vozes dos roteiristas nativos americanos”, afirma Archambault, produtora executiva do longa.
“’Guerreiros do Baquete’ é importante para o mundo porque mostra o povo navajo em um contexto moderno e é mais autêntico que qualquer filme já feito [sobre o tema].” Com a entrada da produtora de LeBron James, astro da NBA, e dois anos de trabalho no roteiro, a produção virou alvo de leilão entre Amazon Studios e Netflix, com a última vencendo a disputa.
Em 2021, a equipe começou a recrutar jovens dos povos originários nos Estados Unidos e no Canadá para formar o time dos Guerreiros de Chuska. “Guerreiros do Basquete” teve uma estreia especial no estado americano de Novo México, onde foi rodado, ao mesmo tempo em que entrou na Netflix.
É um filme com estrutura comercial, porém com alma e autenticidade – por exemplo, a abertura traz o hino dos Estados Unidos cantado em navajo por um atleta. “Espero que ‘Guerreiros do Basquete’ mostre que não adianta lacrar sem lucrar”, afirma Mauricio Mota. “É um filme divertido sobre esportes, mas com temas importantes.”
Outro movimento histórico envolvendo brasileiros em Hollywood é liderado pela produtora Maria Farinha, que recentemente se tornou uma peça importante na indústria americana ao abrir seu escritório em Los Angeles, comprar parte da produtora Violet Films, responsável pelo curta documental “Os Capacetes Brancos”, primeiro Oscar da Netflix, e assumir parte da equipe da extinta Participant Films, que venceu 21 troféus no Oscar e 18 prêmios Emmy com projetos de impacto social do quilate de “Spotlight”, “Roma” e “Olhos que Condenam”.
“Impacto significa audiência”, resume o roteirista Marcos Nisti, cofundador da produtora ao lado da diretora e roteirista Estela Renner. A firma não se concentra apenas em projetos com temáticas ecológicas e sociais, mas também trabalha por trás das câmeras para estabelecer práticas sustentáveis e inclusivas. “Não é sobre as causas que acreditamos, mas aquelas para as quais a humanidade acordou e que são a única saída para este planeta.”
Com o fim da Participant, um vácuo enorme foi gerado no cinema. Na época, uma carta aberta foi assinada e divulgada por 60 nomes importantes da indústria, como George Clooney, Alfonso Cuarón e Viola Davis. A Maria Farinha, que já trabalhava com a empresa americana no desenvolvimento de “Esperanza”, série que tem Fernando Meirelles como showrunner e astros hollywodianos no elenco, viu uma oportunidade de ampliar seu alcance depois do sucesso de “Aruanas” no Brasil.
“Nossos projetos sempre olharam para fora, porque nossas questões não se limitam à fronteira do país”, conta Renner. “Cinema de impacto não é coisa de nicho. Encaramos ‘Divertida Mente’ como cinema de impacto. A animação não reproduz estereótipos, não faz leitura machista do mundo e nem reforça racismos estruturais. Ela pensa em inclusão, colaboração, criatividade, cultura de paz e respeito.”
Com esse pensamento audacioso, a Maria Farinha Films trouxe Miura Kite, a todo-poderosa da divisão de TV da Participant, para sua linha de frente, agora como presidente de conteúdo global. Com ela, duas pessoas da sua equipe e propriedades intelectuais atreladas a artistas de “Homeland”, “Ted Lasso”, “Euphoria” e “Peaky Blinders”.
Uma entrada que está sendo notada pelos estúdios de Hollywood. “Isso vai fazer bem para a autoestima do cinema brasileiro”, diz Nisti. “Antes, éramos os brasileiros engraçados. Agora, somos pouquinho concorrentes.”
O Festival do Rio, que começou na semana passada, exibe quatro filmes que representam o momento atual do cinema de impacto feito por brasileiros, mas nos Estados Unidos. “Maré Alta”, de Marco Calvani, é protagonizado pelo ator Marco Pigossi em seu primeiro papel após a série “Gen V”. Elogiadíssimo em suas exibições em festivais de Nova York e San Francisco, nos Estados Unidos, o drama fala sobre um imigrante do Brasil buscando uma nova vida nos Estados Unidos ao mesmo tempo em que lida com sua homossexualidade recém-aberta.
Pigossi se mudou para Los Angeles em 2018, se casou com Calvani no mês passado e se dedica a projetos independentes com temáticas relevantes, como imigração e comunidade LGBTQIA+. “É também um recomeço para mim. É um privilégio chegar aqui com uma estabilidade e poder me dedicar 100% às histórias em que acredito, com que me identifico e que me emocionam como artista.”
É a mesma intenção do diretor, produtor e roteirista Fernando Grostein Andrade com o projeto que lança ao lado do ator e músico Fernando Siqueira. O documentário musical “Necklace” fala sobre trauma e saúde mental, e foi rodado nos estados americanos de Utah e Califórnia e na Bahia.
Grostein Andrade, que mora em Los Angeles desde 2018, acredita que “privilégio vem com responsabilidade” ao se dedicar a projetos de cunho social, como “Quebrando Mitos”, “Carcereiros” e “Abe”, seu primeiro filme de ficção com foco internacional, estrelado por Noah Schnapp, de “Stranger Things”, e Seu Jorge. “Acho importante fazer produtos brasileiros em inglês, pois conseguimos levar nossa cultura para outros países”, diz o cineasta.
Indicado ao Oscar pelo documentário “Onde Eu Moro”, o diretor Pedro Kos estará no Festival do Rio em dose dupla. “No Nosso Sangue”, sua estreia na ficção, é um longa de terror em inglês que se desenvolve na fronteira com o México. Já “O Efeito Casa Branca” é um documentário elaborado com imagens de arquivo que descortinam toda a campanha de desinformação contra as mudanças climáticas bancada pela indústria do petróleo.
Em comum entre os dois, há o horror causado por um sistema opressor que desumaniza seus próprios cidadãos em nome do lucro. “Adoro filmes de gênero que usam temáticas reais e nos chacoalham ao ponto de questionarmos nosso mundo e nossos obstáculos”, diz Kos.