BOTÕES VERMELHOS

Nova crônica de Paulo Porto sobre arte, provoca: arte, só é arte quando é boa, bela e verdadeira - e em qualquer lugar. E o homem comum, que está em todo lugar, a reconhece mesmo ao longe.

  • Data: 16/08/2024 17:08
  • Alterado: 18/08/2024 13:08
  • Autor: Redação
  • Fonte: Paulo Porto
BOTÕES VERMELHOS

Crédito:ChatGPT

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Não sei se o sol fritava o asfalto, mas parecia haver mormaço. Não sei se o ar estava límpido, porque tudo ao meu redor era cinza. Tampouco me importei no provável desgaste de minha velha visão e de tudo o que meus olhos já haviam visto, porque, em verdade, parado em uma dessas filas de carro – que em ordem obedeciam a um sinal vermelho – numa qualquer via dessas zonas urbanas muito habitadas, apenas me ocupava em fitar um malabarista, em sentido oposto ao meu, que, a uns cem metros de mim, lançava aos céus, em límpida e verde exibição (para ele), várias claves, cuja cor vermelha me fazia as distinguir de tudo isso o que me rodeava e que, diga-se, eu poderia, com tranquilidade, chamar de resto.

Havia ali uma exibição artística, não tive dúvidas. Sua cabeça, concentrada no que fazia, parecia vestir, em tom marrom, um chapéu social – ou mesmo um tipo Panamá – de aba curta. Ele estava longe demais pra eu perceber, mas pude imaginar que sorria.

E, apesar da leveza de suas manobras, um colete, da mesma cor do chapéu, abanava sutilmente, como asas, a cada elevação de seus braços, e completava, no que bastava, sua indumentária artística.

Segundos mal calculados que restaram para tornar verde o sinal, não me pareceram suficientes para revelar a segunda e a terceira utilidade daquele Panamá, nessa ordem: a reverência da gratidão (prova, para mim, que ele sorria) e o prato com abas, cujo passadio repousa, com exclusividade, nas graças da segunda utilidade de seu chapéu.

Contudo, não me pareceu, para ele, importante essas coisas de tempo certo e, isso, fez renascer em mim uma velha máxima muito presente em nossas modernas sociedades:

– Coitado: é um artista.

Me fez pensar também, sem querer, que sou cristão, quase que como desculpa para eventuais misericórdias, todavia, esse sentimento me foi rapidamente desfeito, até porque, pelo que pude perceber, nada mais do que disse até aqui – ou que venha a dizer, me parecerá caber por entre a carneira daquele chapéu-prato.

Destarte, senhores, muito menos por sua arte, mas muito mais por suas dissonâncias – imperceptíveis ao homem comum, estava à 100 metros de um verdadeiro artista.

Desses que, antes de ser de rua, indoor, étnico, de raça, com claves, falando, tocando, dançando, rabiscando telas ou paredes, talhando ou derretendo pedras ou, ainda, se  lançando sobre o inalcançável, havia ali, antes de tudo, um artista. Como eu sei?

Porque, para o artista verdadeiro, importa manifestar sua transcendência, porque ele deu a mim, em sua busca, àquilo que me soou belo, bom ou verdadeiro. Àquilo que não encontramos (a não ser em tentativas) em ninguém na Terra e que, no entanto, nós, homens comuns e sociais, sem saber ao certo o por quê, buscamos.

E, por esse pensamento que nasceu em mim, um outro, em rebote, duramente devolveu-me:

– Coitado é de mim, que, sem o mesmo ‘saber por quê, sinto precisar tanto desse cara, porque, afinal, quem mais me traduziria sinais que, sozinho, como estou agora, sou incapaz de conceber?

E com um pouco mais dessa já poesia em mim, em pura sensação de completude, por que não aderir à unidade proposta por àquele que, outrora, na própria carne – pessoalmente – nos revelou não apenas quem somos, mas para onde deseja que sigamos, uma vez que somos todos um – e não um algo ou nenhum nada.

Coitado de mim que, ao avançar o sinal, naquela via oposta – e ainda fitando-o, ele, não de graça, mas por sua arte, gastou também comigo sua reverência, então utilidade à graça de seu chapéu, no momento em que, bem perto, pude notar um pequeno, sutil detalhe: suas asas eram adornadas por cuidadosos e bem instalados pequenos botões vermelhos, diante de tudo o que me era cinza e mormaço.

Naquela mesma cor de suas claves, mas mais daquele farol que, na regra do homem – pelo conjunto da pressa com que insistimos em conduzir nossas vidas, ordinariamente nos faz parar, e que, porém, agora, em atenção ao cosmo verdadeira e originalmente ordenado, me revelou em resto, a sobra de reconhecer um respeito que fez-me abaixar a cabeça em sinal de reverência àquela busca transcendental de que ele, em verdade, se ocupava e que eu, sozinho, jamais conceberia. Para mais tarde, só mais tarde – e com muito atraso – perceber que sou eu quem calcula mal o tempo.

A arte verdadeira não se apega ao que aqui, na Terra, detém o homem. Nem mesmo ao tempo, pois ela não se move daquilo que já está posto. Ela existe e se move por meio daqueles que aqui são postos.

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  • Data: 16/08/2024 05:08
  • Alterado:18/08/2024 13:08
  • Autor: Redação
  • Fonte: Paulo Porto









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