Entrevista: ‘Não quis ser responsável por ação equivocada’, diz Dr. Julio Croda
Médico, professor da UFMS e pesquisador da Fiocruz que deixou governo, critica falta de base técnica em discurso de Bolsonaro e politização do debate sobre medidas contra coronavírus
- Data: 16/04/2020 11:04
- Alterado: 16/04/2020 11:04
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Julio Croda
Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil
O médico Julio Croda acompanhou de dentro do Ministério da Saúde a escalada da disputa com o presidente Jair Bolsonaro até que, no fim de março, decidiu deixar o governo. “Não quis ser responsável por essa recomendação equivocada contra o isolamento social e por um número importante de óbitos”, afirmou ao Estado o ex-diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. Infectologista, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Croda avalia que a troca de ministro será o desfecho de um enredo de derrota no combate ao coronavírus.
“Se a gente já tinha dificuldade com ministério mais técnico, perdemos essa capacidade (com a troca).” Para ele, o País apresentava bons índices de isolamento, mas a média caiu para abaixo de 50%. Croda aponta como fatores para a queda desses índices o crescimento de discurso anti-isolamento, capitaneado por Bolsonaro, somado à falsa sensação de que “o pior já passou”.
Qual seria o resultado de uma mudança tão radical de discurso e ação do Ministério da Saúde, com troca de comando?
Essa mudança (de discurso) já ocorreu. Discurso não unificado gerou a diminuição do isolamento. O que a gente vai ter, se o ministro (Luiz Henrique Mandetta) ficar ou não, é a consequência de uma orientação do presidente (Jair Bolsonaro). Muito difícil acreditar que só o ministro teria capacidade de reforçar a mensagem de isolamento e isso ser efetivo. O que a gente está vendo, com troca ou não de ministro, que pode se concretizar nos próximos dias, é que isso é um enredo final da nossa derrota em relação à resposta à covid-19. Se já tínhamos dificuldade com um ministério mais técnico, perdemos essa capacidade (com a troca). Tudo o que foi construído vai ser perder rapidamente, e nossa resposta vai ser pior. Mas não existe ponto de virada, já está acontecendo ao longo do tempo. Essa observação está claro nos dados de mobilidade. Nas últimas duas semanas, houve redução do isolamento. Esse embate sobre a questão do isolamento pode ter refletido. Acho que não é só o presidente da República. Ele representa um grupo de pessoas que pensam diferente. O futuro vai nos mostrar quem tinha razão nessa questão tão importante. Sabendo que conhecimento técnico é muito mais a favor do isolamento.
Por que o senhor decidiu sair do ministério?
Justamente por essa questão do isolamento social. O que realmente funciona é isolamento social, testagem em massa e leito de UTI. Importante existir um discurso unificado e não politizar o debate. Essa medida é a mais efetiva para ter capacidade de resposta à epidemia. Se me perguntar hoje: o isolamento no Brasil salvou vidas? Salvou muitas vidas. Não quis ser responsável por essa recomendação, equivocada, contra o isolamento. E responsável por um número de óbitos importantes. A gente sabe que, se não tiver isolamento, vai aumentar o número de casos. Vai superar nossa capacidade. Principalmente de atendimento na população mais pobre. Não tem nada a ver com ministro, ele apoia essas medidas de isolamento. Mas existe um ruído entre o que o ministério fala e o que o presidente fala. Eu antecipei. Seria muito difícil manter o isolamento no Brasil com discursos que não sejam técnicos e unificados.
O ministério chegou a fazer alguma concessão ao discurso do presidente?
Independente das concessões. O discurso diferenciado gera atitudes individuais diferenciadas. Não precisa ter concessão. Só por ter discursos diferentes frente a uma questão técnica gera politização, apoio político para um lado ou outro, o que prejudica a resposta brasileira.
Qual o cenário da doença no Brasil? E para onde caminhamos com medidas já tomadas?
A gente está num processo importante de isolamento. Existe apoio da população, a gente vê pelas pesquisas. Chegou a índices aceitáveis em muitas cidades. Entendo que houve redução nas últimas semanas, principalmente por notícias não baseadas em evidências científicas, questionando o isolamento. Gera mais desinformação do que ajuda. Ao fim da semana de 22 de março chegamos a 60% (de isolamento). Desde este momento o índice vem caindo. Hoje atingimos um dos índices mais baixos no País, 47%, com apenas Pernambuco acima de 50%. Esse indicador é muito preocupante.
As regiões de menor isolamento são justamente onde há apoio maior ao discurso do presidente Bolsonaro. Isso é claro no mapa. Isso preocupa: como a gente vai lidar no futuro, se a gente vai ter leito ou não. A gente está só no início do processo. Se continuasse como estávamos, não teria pico da doença, a gente iria distribuir casos graves ao longo do tempo. Quando tem isolamento adequado, não tem pico.
Tem questões aí também importantes, que temos de responder num futuro próximo: quando sair do isolamento? Com a dificuldade de testagem no Brasil, muito aquém da necessidade, a gente pode ver que tem número importante de pacientes graves em São Paulo e até óbitos que não foram testados. Quando a gente não tem teste, precisa usar outros parâmetros. A partir desse momento, a gente consegue entender quando interromper o isolamento no País. Provavelmente, será em meses. Mas a gente precisa já começar a monitorar a cada 15 dias, através de inquérito de soro-prevalência rápida, como está a circulação no País do vírus.
Os dados mostram maior índice de isolamento em bairros pobres ou ricos?
Nos mais pobres, o índice de isolamento é menor do que nas classes com maior poder aquisitivo. Já o discurso contra o isolamento, na grande mídia, vem mais de grandes empresários, também ligados ao agronegócio, do que da população pobre, periférica, onde, com certeza, o impacto será mais severo.
Há um discurso da população mais rica contra o isolamento social, defendendo aspectos econômicos. A gente vê até certa solidariedade e adesão em locais mais pobres, daqueles que podem ficar em casa.
Se a gente não consegue convencer a população mais educada, com poder aquisitivo mais alto, que a melhor medida é ficar em casa, imagine com a população mais pobre, que tem necessidades mais urgentes.
O País já deveria ter feito alguma medida de ‘lockdown’ (fechamento total) ou isolamento feito estava adequado?
Isolamento que estava sendo adotado, sem esse ruído das últimas semanas, estava bem adequado. Não seria necessário lockdown se a gente mantivesse índices de semanas atrás.
Agora pode ser que volte para uma transição importante. A gente não sabe se essas mudanças que ocorrerão ou já ocorreram no imaginário popular se solidificaram. E a questão do não isolamento se tornou mais forte. Pode ser que, se essa tendência de queda de isolamento se confirmar, a gente tenha transmissão importante. Superlote serviço de saúde e cidades deverão lançar mão do lockdown, quarentena mais restrita.
A cloroquina e a hidroxicloroquina são os medicamentos mais promissores contra a covid-19?
Não dá para afirmar. Não tem nenhum estudo, ensaio clínico de padrão ouro, randomizado, então a gente não tem nenhuma medicação atualmente que tenha evidência sólida para recomendação em larga escala a toda população.