Tribunal do RS permite registrar bebê com sexo ignorado
Decisão, inédita no País, vale para quando formação da genitália da criança não permite definir claramente se é menino ou menina
- Data: 29/06/2019 11:06
- Alterado: 29/06/2019 11:06
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Crédito:
Aos cinco meses de gravidez, Deise Batista saiu da consulta médica com 98% de certeza de que teria uma menina. A uma semana do parto, um novo exame indicou que era menino. O bebê tinha ambiguidade no canal urinário, que impossibilitava a clara distinção do sexo biológico, o que persistiu após o nascimento.
Essa condição envolve características atípicas da genitália, dos testículos ou dos ovários. Passados quatro meses, uma série de exames e uma pequena cirurgia, os médicos tiveram certeza de que o filho de Deise era um menino. Só depois de um ano, porém, Cleiton foi registrado em cartório. O caso dele, hoje com 19 anos, não é a regra.
A Lei de Registros Públicos dá 15 dias para registrar o nascimento e exige que a certidão tenha sexo e nome do bebê. Sem o documento, fica difícil obter licença-maternidade ou paternidade, incluir o bebê no plano de saúde ou o transporte para serviços hospitalares de referência. Isso obriga muitos pais a fazerem o registro com sexo definido, para garantir direitos civis, com risco de transtornos judiciais e sociais mais tarde.
Decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicada este mês, inédita no País, muda essa realidade. A Consolidação Normativa Notarial e Registral prevê a possibilidade de se emitir a certidão com sexo ignorado e nome genérico, descrito como “RN” (recém-nascido) seguido do nome de um ou dos dois pais. No prazo de 60 dias, o registro pode ser mudado em cartório, indicando nome civil e o sexo, sem custo aos pais. Se preciso mais tempo, o Ministério Público é acionado para acompanhar até que o registro seja atualizado com segurança.
“É uma decisão que tem de ultrapassar o Rio Grande do Sul, porque vai ajudar muito essas famílias”, afirma Gil Guerra Júnior, que coordena o Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), junto com a professora Andréa Maciel Guerra. Além do desgaste jurídico, diz, as consequências de um registro precipitado podem ser de sofrimento psíquico. Muitas vezes, os casos chegam ao atendimento especializado já na puberdade – quando um menino desenvolve útero ou uma garota deixa de desenvolvê-lo, por exemplo.
A norma gaúcha só foi possível por ação conjunta entre o Hospital de Clínicas de Porto Alegre e OS Núcleos de Estudos de Saúde e Bioética e de Direito de Família da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. A demanda surgiu da experiência dos profissionais no ambulatório multidisciplinar do Hospital de Clínicas, que acompanha os pacientes semanalmente.
“Colocamos a sugestão para que não se registrasse os pacientes de saída, e aí se levantou que esse retardo poderia afetar a família do ponto de vista social. Como centro de referência, recebemos muitos pacientes de outras cidades, e se o recém-nascido não está registrado, ele não pode ser transferido”, conta o cirurgião pediátrico Eduardo Costa, coordenador do programa.
A advogada Márcia Fernandes, que integra o grupo multidisciplinar do hospital e o Núcleo de Estudos de Saúde e Bioética da Escola da Ajuris, levou o assunto à entidade, que mobilizou o Judiciário e os representantes de cartórios. Ao longo de um ano, as equipes discutiram o tema até chegar ao provimento.
Para a corregedora-geral da Justiça Estadual gaúcha, desembargadora Denise Oliveira Cezar, que assinou a decisão, compreender a angústia das famílias ajuda a dimensionar a importância da medida: “Quando depois da realização dos exames endocrinológicos e genéticos, muitas vezes acontece de o sexo biologicamente identificado não ser aquele que consta na certidão”, diz ela. “Isso gera uma série de transtornos não apenas sob o ponto de vista jurídico, mas inclusive do ponto de vista social, porque os familiares todos são apresentados ao bebê menino ou bebê menina de nome tal e depois tem de explicar que não é”. O Hospital das Clínicas acompanha 140 casos do tipo no Rio Grande do Sul.
“Há questões social e emocional envolvidas, além do exercício dos direitos da criança”, diz a juíza Dulce Gomes, coordenadora do Núcleo de Estudos de Direito da Família da Escola da Ajuris. Segundo ela, essa decisão tem abrangência local porque cabe a cada tribunal editar as normas de registro civil nos Estados.
Para se tornar nacional, seria preciso mudar a Lei de Registros Públicos, com aprovação do Congresso. Mas Dulce acredita que pode inspirar outros tribunais no País. A medida da Corte gaúcha é restrita à diferenciação do sexo biológico – não leva em conta outras definições de gênero do ponto de vista social.
A Alemanha foi o primeiro país da União Europeia a permitir o registro de recém-nascidos com sexo indefinido, em 2013. Austrália, Nova Zelândia e Canadá também adotaram a medida.
SUBNOTIFICAÇÃO
Os dados do Ministério da Saúde apontam para média anual de 500 nascidos vivos com sexo ignorado no Brasil, entre 2007 e 2017. Para Guerra Júnior, porém, há subnotificação. O professor da Unicamp cita estudo feito em Alagoas, que identificou um caso de dificuldade de distinção sexual a cada cem nascimentos em Maceió, entre 2010 e 2011.
A subnotificação se dá pela falta de conhecimento dos próprios pediatras. Segundo Guerra Júnior, quando a genitália se parece muito a um dos sexos, a tendência é o pediatra indicar aquele sexo biológico, ou então os médicos encaminham diretamente para cirurgia de “correção”, antes mesmo de executar exames mais detalhados.
Também pesa a questão social. A indiferenciação sexual envolve tabus culturais e preconceito. Até mesmo a formação de grupos de apoio a pais e crianças com esse diagnóstico ainda é limitada no Brasil.
O esclarecimento dos pais e dos médicos para compreender a situação é fundamental, como mostra o exemplo de Cleiton. “Sempre me deixaram a par do que tinha acontecido e tive liberdade para fazer perguntas, tirar dúvidas”, conta. “Na época, fui registrado um ano e quatro meses após o meu nascimento, mas meus pais conseguiram isso porque tinham um documento do médico indicando o diagnóstico. Acho que esta decisão inédita da justiça gaúcha vai ajudar muitas famílias.”
Aluno de Pedagogia, o adolescente diz levar uma vida normal, tem planos de viver no exterior e formar uma família. E segue acompanhado pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Em julho, Cleiton vai contar sua história no 7.º Simpósio Internacional de DDS (do inglês, Disorder of Sexual Differentiation), que será em São Paulo – pela primeira vez fora da Europa.
CONDIÇÃO PODE EXIGIR CIRURGIA
Na Medicina, considera-se que há ambiguidade quando uma genitália que parece ser masculina tem a presença de um pênis pequeno, testículos não palpáveis ou a abertura da uretra não está na ponta do pênis.
No caso de genitália que parece ser feminina, a dificuldade de distinção se dá quando o clitóris é aumentado, as gônadas (onde se produzem as células reprodutivas) são palpáveis ou há fusão dos grandes lábios.
Quando mais de uma dessas características está presente, existe franca ambiguidade sexual, então é necessária uma investigação por meio de exames clínicos, que podem ou não estar relacionados a procedimentos cirúrgicos e tratamentos hormonais para a distinção do sexo biológico.