Mônica Salmaso se une a André Mehmari em tributo a Milton
O cantor e compositor se aposentou dos palcos
- Data: 10/12/2022 00:12
- Alterado: 10/12/2022 00:12
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
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Um tributo a Milton Nascimento poderia soar batido – e até oportunista -, sobretudo agora que o cantor e compositor carioca/mineiro se aposentou dos palcos e no ano de seu 80º aniversário. Não é o caso de Milton, disco de piano e voz que a cantora Mônica Salmaso e o pianista, compositor e arranjador André Mehmari lançaram recentemente, em edição pela gravadora Biscoito Fino.
Primeiro porque quem presta a homenagem são dois grandes nomes da música popular brasileira. Mônica, cantora revelada no início dos anos 1990, sempre primou por interpretar aquilo que se dispõe com excelência vocal. Além disso, jamais deixa escapar o signo linguístico de cada canção. Um diferencial e tanto nos dias de hoje.
Fez assim quando recriou Os Afrosambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes em 1995 ou quando mergulhou no repertório de Chico Buarque – com quem atualmente divide o palco na turnê Que Tal Um Samba? – no álbum Noites de Gala, Samba na Rua, de 2007. Com Milton, não ocorreu diferente.
Mehmari, que transita entre o popular e o erudito, sabe bem os caminhos da composição – o maestro João Carlos Martins executou recentemente uma obra de Mehmari em sua volta ao Carnegie Hall, em Nova York. Dessa forma, fica à vontade para entender e traduzir, da sua forma e a partir do que a voz de Mônica pede (os dois têm uma convivência de mais de 20 anos), os caminhos melódicos tão particulares de Milton e parceiros.
FAVOR
O calendário também está a favor deles. O álbum é, quase em sua totalidade, derivado de um registro audiovisual realizado em dezembro de 2020, no Estúdio Monteverdi, de propriedade de Mehmari. A exceção é a faixa Morro Velho, gravada um pouco antes para um projeto chamado Quarentena. Foi ela que acabou por inspirar a ideia de um álbum só com canções do repertório de Milton.
Nas 11 canções escolhidas para o álbum, Mônica e Mehmari pegam o ouvinte pelas mãos para uma viagem no trem de Bituca que, apesar de ter espiado o mundo do seu quintal, sobretudo quando se trata de sonoridade, sempre mirou seu olhar – e o disco da maneira como foi roteirizado é a prova disso – para o povo do Brasil.
As duas primeiras canções, A Lua Girou, uma adaptação de Milton para um tema popular, e Noites do Sertão, parceria com Tavinho Moura, trazem a noite, o sol, o sertão, o amor e o calor presentes na obra do homenageado. Mônica, em A Lua Girou, evoca os vocalizes de Milton, mostrando que ele é uma referência como cantor.
“A voz de Milton é absolutamente marcante, em qualquer fase da vida. Lembro de uma aula de história da arte quando eu estava no colegial que, em determinado momento, tocou Beatriz, na voz de Milton. Fui parar em um lugar que eu dificilmente irei esquecer. Milton é algo de grande porte. Ele é muito além de tudo”, ressalta Mônica.
A cantora diz que, em algumas, no passado, se sentiu intimidada em gravar algo que Bituca já tinha cantado. A superação do temor ocorreu quando ela gravou justamente Beatriz – é preciso lembrar que a canção é parceria de Edu Lobo e Chico Buarque -, em 2007. “Foi aí que venci a rebentação. Entendi que Milton vem junto. Ele é uma casa do canto brasileiro”, diz.
Para Mehmari, Milton chegou na infância, por meio dos discos de Elis Regina, uma cantora que reinava em sua casa. “A voz do Milton, para mim, é a do seu canto milagroso, mas também a do compositor de uma música mestiça, de encontros. Isso é algo que permanece na minha vida. A música dele me norteou a ter um ouvido aberto. A harmonia do Milton está notoriamente presente no que eu componho”, lembra.
O músico cita como exemplos o disco que Milton fez com o saxofonista americano Wayne Shorter, Native Dancer, de 1975. “O que é aquilo? É jazz, MPB, é clássico? É uma música universal, brilhante”, garante.
Na outra ponta, segundo Mehmari, está Paixão e Fé, de Tavinho Moura e Fernando Brant, uma das escolhidas para o disco que ele fez agora com Mônica. “Essa traz o som de Minas (Gerais) profunda, do profano, do religioso, das ruas. E dos Beatles, que eu conheci por meio do Milton”, observa.
O álbum Milton também é sobre poesia. Além de Brant, um poeta da música popular, parceiro mais constante de Bituca, estão Violeta Parra, a compositora chilena da faixa Casamento de Negros, o mineiro Carlos Drummond de Andrade, de quem Milton musicou Canção Amiga. Duas obras são em parceria com Caetano Veloso. Paula e Bebeto, que fecha o disco, e A Terceira Margem do Rio, na qual Mônica lê um trecho do texto homônimo de João Guimarães Rosa presente no livro Primeiras Estórias.
ESPONTANEIDADE
Mônica e Mehmari contam que o álbum Milton nasceu dentro do estúdio. E está indissociável do estado emocional que a quarentena impôs à humanidade e do governo brasileiro hostil à cultura e aos artistas. A intimidade dos dois com a obra de Milton foi determinante para o resultado final.
“Os lugares para onde essas palavras, notas e harmonias nos levaram estão contaminados por tudo que estávamos sentindo. Foi um grito de desespero para voltar para casa. A obra do Milton é o Darcy Ribeiro que deu certo”, completa Mônica.
Os arranjos, segundo Mehmari, que define o trabalho como uma “fúria boa”, não foram ensaiados. Tudo feito em, no máximo, três takes, com o músico pilotando também a parte técnica. “Eu me senti assessorado pelos anjinhos barrocos do Milton”, brinca.
Em A Terceira Margem do Rio, Mehmari trocou o piano pela marimba de vidro. “Estava buscando algo que não tinha no piano. Um instrumento essencialmente europeu, nesse caso. Quando dei a primeira nota na marimba (originária da África), os olhinhos da Mônica brilharam”, admite.
A faixa tem ainda a participação de Teco Cardoso na flauta baixo. Mônica toca um handpan que Mehmari trouxe da Noruega que casou com a escala que Milton usou na gravação original. “São os tais anjinhos do Milton”, diverte-se Mônica.