Funai de Brasília barrou Bruno durante a primeira fiscalização com indígenas no Javari
Em 2021, a entidade dos povos indígenas no Vale do Javari afirmou ao MPF que pessoas dentro da Funai queriam “acertar o Bruno e a Univaja” com medidas administrativas
- Data: 23/06/2022 15:06
- Alterado: 17/08/2023 01:08
- Autor: Redação
- Fonte: Agência Pública/Rubens Valente, José Medeiros
Sede da Funai no Vale do Javari
Crédito:José Medeiros/Agência Pública
Documentos da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do MPF (Ministério Público Federal) obtidos pela Agência Pública com exclusividade mostram como o comando do órgão indigenista em Brasília dificultou uma ação de fiscalização na Terra Indígena Vale do Javari por causa da presença do indigenista Bruno Pereira entre os indígenas que fariam a vigilância no território. Ele foi assassinado no dia 5 de junho junto com o jornalista Dom Phillips.
Por um ano e dois meses, de 2018 a 2019, Bruno chefiou a coordenação especializada em índios isolados e de recente contato da Funai em Brasília. Ele foi destituído do cargo durante o governo Jair Bolsonaro em meio a pressões políticas e logo tirou uma licença não remunerada. A partir daí, passou a atuar na organização das equipes indígenas de vigilância como parte de um projeto tocado pela Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), a principal entidade indígena da região.
Em agosto do ano passado, a Univaja comunicou por escrito à Funai e às autoridades do Javari que iria iniciar uma atividade de monitoramento e fiscalização contra diversos crimes ambientais ocorridos na terra indígena. Seria a primeira atividade do gênero no Javari dentro do projeto coordenado pela Univaja.
Segundo um levantamento da entidade, somente naquele mês “foram encontradas seis canoas de invasores andando no rio Itaquaí”, o mesmo rio em que Bruno e Dom seriam, meses depois, assassinados.
“Fiscalização é pesado, perigoso, importante discutir na aldeia, essa discussão nunca foi feita de forma aprofundada nas aldeias kanamary, por isso é importante que se faça. Do igarapé Independência até a aldeia Tracoá está cheio de parente isolado, e até agora não há discussão sobre o que fazer com isso”, diz o relatório da Univaja.
Segundo a entidade, as constantes invasões ameaçavam a segurança dos indígenas que vivem em isolamento voluntário na região. Em 2021, disse a Univaja, “encontraram na aldeia Tracoá um arco e flechas dos isolados, uma liderança vendeu para um profissional da SESAI por R$ 150,00”.
Assim, a ação de fiscalização da Univaja procurava coibir a presença dos invasores e proteger os isolados. Ela duraria cerca de 30 dias ao longo dos rios Ituí e Itaquaí. Os indígenas passariam por um treinamento “para o uso de GPS, mapas, drones civis, sistema de radiofonia e comunicação satelital, equipamentos de audiovisual, sistema de geração de energia solar, manutenção de motores de popa e estacionários, legislação ambiental e indigenista, uso de EPIs adequadamente, técnicas de primeiros socorros e prevenção de doenças, técnicas para registro das ameaças e agressões ao meio ambiente, dentre outros”.
Em agosto do ano passado, a Univaja comunicou à Funai e ao MPF que iria iniciar a atividade de monitoramento e fiscalização contra diversos crimes ambientais dentro da Terra Indígena Vale do Javari. A ação seria executada por 12 indígenas e pelos indigenistas Bruno Pereira, Orlando Possuelo e Cristóvão Negreiros Pissango.
Os documentos que integram uma Ação Civil Pública que tramita em Manaus (AM) e discute toda a situação da terra indígena mostram que a Funai problematizou a presença de Bruno entre os indígenas e não concedeu uma autorização em tempo hábil para a sua participação na vigilância.
Na época do pedido feito pela Univaja, o coordenador regional da Funai em Atalaia do Norte (AM) era Henry Charlles Lima da Silva, um tenente da reserva do Exército nomeado no governo Bolsonaro. Em julho de 2021, veio à tona, na Folha de S. Paulo, uma gravação na qual Silva aconselhou indígenas a “meter fogo” em isolados. Ele saiu do cargo em novembro daquele ano.
Em agosto, em resposta ao ofício da Univaja, Silva afirmou que “a autorização de ingresso em Terras Indígenas é uma prerrogativa da Presidência da Funai, a qual enseja que sua solicitação seja feita previamente considerando os fluxos processuais exigidos para tanto”. Ao mesmo tempo, conforme reconheceu Silva, a coordenação regional da Funai poderia autorizar a “realização das atividades essenciais às comunidades indígenas”, citando “atendimento de saúde, segurança, entrega de gêneros alimentícios, de medicamentos e combustível”.
Silva disse ainda que não se opunha à entrada dos indígenas, “apesar da atividade não se encaixar naquelas de cunho essencial”. “Entretanto”, disse o militar, “o ingresso de pessoas não indígenas para realização de tal atividade nos demanda encaminhar para avaliação da Presidência da Funai, que por sua vez, enseja que aguardem pelo parecer técnico daquele gabinete”.
Bruno Pereira era apoiado pelos indígenas e estava no projeto de monitoramento a convite da coordenação da Univaja. Havia coordenado o escritório da Funai em Atalaia por quase cinco anos.
“É digno de nota que Bruno Pereira, servidor de carreira da FUNAI, lotado nos quadros da Frente de Proteção do Vale do Javari, licenciado nos termos da legislação vigente, é considerado por esta organização regional e pelas organizações que integram nossa base política, a maior autoridade do país no trabalho em campo especializado em índios isolados no atual contexto. Sua participação se deu a convite desta organização em razão do notório saber e especialidade, além da grande confiança que desperta entre nossas lideranças”, escreveu a Univaja em 2021.
A Univaja reagiu com veemência ao ofício de Silva, o coordenador da Funai. “O desarrazoado e a burocratização do ingresso da equipe Univaja na própria terra nada tem a ver com protocolo de segurança em saúde e tampouco é razoável. Isto porque a própria autarquia não cria embaraços a qualquer estranho indígena ou não, que queira ingressar na TI [terra indígena]. Além disso, os muitos casos de invasão por parte de pescadores ilegais e caçadores só tem aumentado sem que CR [coordenadoria regional] possua tal preocupação”.
A coordenação dos índios isolados da Funai afirmou que aceitaria a entrada da equipe de vigilância, desde que os trabalhos fossem conduzidos por um servidor do próprio órgão lotado na Frente de Proteção Etnoambiental do Javari. Sobre Bruno, contudo, o órgão afirmou que ele estava em “licença para tratar de Assuntos Particulares”, o que tornaria “necessária orientação da Diretoria de Administração e Gestão (DAGES) da Funai, através de sua COLEP, sobre a pertinência de algum procedimento específico interno, tendo em vista se tratar de servidor lotado na FPEVJ/FUNAI mas afastado de suas funções para usufruir licença, bem como em relação à observância pelo servidor das condutas éticas preconizadas no serviço público”.
O setor de Gestão de Pessoas da Funai escreveu que teria sido “observado possível conflito de interesse” e por isso Bruno deveria encaminhar consulta à CGU (Controladoria Geral da União), por meio de uma petição eletrônica no sistema eletrônico da CGU. Além disso, o setor de pessoal fez uma “recomendação de não autorizar o exercício de atividade privada pelo servidor na TI Vale do Javari até que seja proferida manifestação definitiva da CGU”.
Meses depois, a CGU concordou com a visão da Funai de que haveria um suposto conflito de interesse e a partir daí Bruno estava sob ameaça de um processo administrativo disciplinar.
Procurada pela Agência Pública na semana passada, a Funai em Brasília se recusou a informar se o processo foi ou não aberto contra Bruno.
Ainda sobre o entrave na fiscalização, o MPF em Tabatinga (AM) solicitou uma série de explicações à Funai, incluindo a apresentação dos “fundamentos de fato e de direito para impedir o senhor Bruno da Cunha Araújo Pereira de continuar executando suas atividades na EVU [equipe de vigilância]”.
Em 27 de setembro, a Univaja confirmou ao MPF que a “Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) e seus colaboradores foi barrada no ingresso da TI Vale do Javari, por parte da Base Proteção Etnoambiental da Funai na confluência dos rios Ituí e Itaquaí”. Informou ainda que a equipe ficou acampada perto da base da Funai no rio Ituí “por mais 10 dias aguardando a liberação de ingresso” e que regressou a Atalaia no dia 11 de setembro sem conseguir cumprir a fiscalização.
De acordo com o ofício da Univaja, as ordens na Funai “eram claras no sentido que a autorização do voluntário ‘Bruno’ estava com impedimento dos Diretores de Proteção Territorial e de Administração da Funai e que se a coordenadora da FPE [Frente Etnoambiental] Vale do Javari, Idnilda Obando, autorizasse o ingresso ‘responderia’ por isso”.
A Univaja escreveu ainda que “oficialmente não recebeu qualquer expediente sobre o ingresso da equipe nem sobre restrição aos não indígenas da equipe”. “Apenas informalmente nos era comunicado que existiam restrições ao nome do servidor licenciado Bruno Pereira, por parte da direção do órgão, CGIIRC e do coordenador regional contra a atuação contundente da Univaja e de seus apoiadores”.
“As informações nunca nos chegaram oficialmente, apenas ouvíamos de alguns servidores melindrosos de receberem retaliações da alta gestão da Funai e da CGIIRC/Funai, que eles queriam ‘acertar o Bruno e a Univaja’”, diz o ofício enviado pela entidade ao MPF.
O indigenista Orlando Possuelo confirmou à Agência Pública que a equipe foi barrada em setembro último e esperou vários dias por uma autorização que nunca chegou. Os indígenas ainda entraram, mas os não indígenas ficaram acampados numa praia do rio Itaquaí.
“A gente foi para o [rio] Quixito primeiro, onde fizemos quarentena. Nesse tempo treinamos GPS, drone, protocolos de segurança, olhamos os mapas, conversamos sobre a vigilância. A gente saiu de lá e foi para a Base [no rio Itaquaí]. [Foi informado] que não tinha autorização para entrar e não podia continuar. Então a gente ficou parada ali próximo ao [lago do] Jaburu, parado numa praia, onde fizemos o monitoramento desse limite da terra indígena”, disse Possuelo.
“A gente não tinha autorização para entrar, a Funai não liberou autorização para [os não indígenas] entrarem. A gente nunca conseguia, a verdade é essa”, disse o indigenista. A situação mudou depois que foi editada uma portaria que concedia à coordenação regional a decisão sobre liberar ou não a entrada. Desde setembro de 2021, Bruno Pereira e outros indigenistas foram autorizados pela coordenação regional a entrar na TI do Javari pelo menos três vezes, disse Possuelo.
A situação novamente mudou há cerca de um mês, quando a presidência da Funai voltou a ter a palavra final sobre os pedidos de ingresso nos territórios indígenas.
Em mensagem à Agência Pública na semana passada, a Funai afirmou, por meio de sua assessoria de comunicação, que “esclarece que não procede a informação de que o servidor licenciado Bruno Pereira estaria sendo perseguido dentro da instituição”.
“Sobre o suposto Processo Administrativo Disciplinar (PAD) envolvendo Bruno Pereira, a Funai esclarece que as apurações disciplinares possuem restrição de acesso para terceiros até o julgamento, nos termos do artigo 7º, parágrafo 3º, da lei 12.527/2011. […] sem prejuízo das demais hipóteses legais sobre informações sigilosas, conforme estabelece também o Enunciado CGU nº 14, de 31 de maio de 2016”.
Greve de servidores da Funai
Segundo informações da Folha de S. Paulo, servidores de pelo menos 18 sedes da Fundação Nacional do Índio, a Funai, realizarão atos e prometem uma paralisação nesta quinta-feira (23) com foco em duas reivindicações: a saída de Marcelo Xavier da presidência do órgão e uma profunda investigação da morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips.
A reportagem da Pública confirmou que em Atalaia do Norte e Tabatinga (AM), no Vale do Javari, servidores do órgão indigenista prometeram parar. Eles reivindicam: “Uma Funai indigenista; segurança para execução da missão institucional; condições dignas de trabalho; justiça para Maxciel, Dom e Bruno”.