Critica: Ainda Estou Aqui (2024)
Após as diversas premiações pelo mundo afora, o tão aguardado filme de Walter Salles entra em cartaz nesta quinta-feira (07), no circuito de salas do cinema nacional
- Data: 07/11/2024 07:11
- Alterado: 12/11/2024 15:11
- Autor: João Pedro Mello
- Fonte: ABCdoABC
Crédito:Reprodução
Direto da obra autobiográfica homônima de Marcelo Rubens Paiva — chega aos cinemas a grande esperança de Oscar do Brasil, Ainda Estou Aqui —, o novo longa do diretor Walter Salles. A obra avança sob um olhar histórico centrado na pele da matriarca da família Paiva, ao extrair as sombras de uma crônica dramática e tocante no contar de uma estória tão humana em meio aos terrores da ditadura do regime militar brasileiro.
Logo de pronto, pelas delicadas lentes de Walter Salles, a trama se ambienta em um Rio de Janeiro do início nos anos 70, onde o diretor se derrama em lindos planos iluminados de closes abertos, seguidos uma Super 8, que lhe confere um ar mais “caseiro” — o que só facilita o teletransporte do espectador de arrasto pra dentro da tela ou melhor, para o sofá daquela família. Assim, fica impossível não embarcar juntos com os Paiva em uma jornada na busca por respostas neste drama político de suspense.
O caminhar do longa faz do público mais que um mero espectador, torna-o testemunha ocular de cada integrante, que contrasta em amalgamas no aconchego da casa feito abraço ensolarado. Desta forma, Salles convida-nos a observar um vórtice emocional de forma passiva, e como de súbito, podemos ir, de um lindo passeio de verão na praia, a um pesadelo de celas frias e tortura silenciosa, levando uma família aos cacos —, e ainda assim, encontrar abrigo na coragem e resiliência em meio as cinzas de uma escuridão silenciosa.
Ao invés de uma narrativa expositiva, o diretor Walter Salles opta pelo uso de sutilezas e sugestão, e assim aborda as mais diferentes formas de luto de cada familiar. Seja no silêncio gritado de uma viúva as cegas, passando pelos sinais de uma filha apegada na casa —, é como o diretor aponta os diversos mecanismos emocionais que representam uma perda calada, que sangra lentamente. Desta forma, Salles opta por reforçar uma constante ausência do personagem Rubens (Selton Mello).
A trama é interpretada por um elenco de peso, que gira em torno de Eunice Paiva (Fernanda Torres), a matriarca da família que precisa lidar com a repentina prisão do marido e engenheiro Rubens Paiva, pela ditadura militar no Brasil. Aliás, a personagem Eunice, vivida por Fernanda Torres, entrega uma atuação de sutilezas e gestos comedidos de uma mãe perdida na escuridão, ao passo que a cada etapa em que o filme avança, premia o espectador com uma espécie de “turbilhão de silêncio contido”, onde nos brinda com uma performance de tensão arrebatadora. O elenco de apoio conta Daniel Dantas, Dan Stulbach, Humberto Carrão, Marjorie Estiano, além é claro da presença ilustre da grande dama da dramaturgia brasileira, Fernanda Montenegro. E aqui cabe ressaltar, Montenegro não precisou mais de 5 minutos e uma palavra sequer, para demonstrar porque é uma das maiores atrizes vivas do cinema, não apenas no Brasil.
Em termos técnicos, o longa aposta em uma trama muito centrada na residência da família —, aqui muito além de uma estrutura de cimento e paredes erguidas —, onde vemos esmero tanto no trabalho de design de produção, quanto na fotografia e iluminação pelos cantos da casa. A busca pelos detalhes fica evidente mesmo nas tomadas externas, notados desde a primeira cena, seja com a protagonista Eunice deitada no mar (quase alheia aos perigos que se avizinham no céu), seja em uma garrafa de Coca-Cola no bronzeado da filha caçula na praia —, onde até no uso de cores gastas e opostas, demarcam uma beleza nostálgica da década dos anos 70, vistas também em carros e locais presentes da época.
A direção de foto de Adrian Teijido, confere tons precisos aos ambientes certos, como nas cenas de paz e casa aberta de cotidiano cálido e iluminado, abusando acertadamente em uma fotografia por vezes granulada, o que reforça o contraste que precede momentos de maior tensão. Dessa maneira, Teijido dosa o calibre de frieza na coloração de paredes úmidas em azul na prisão, ora no pós interrogatório, ora na clausura domiciliar —, aqui medidas na utilização de sombras e ausência de luminosidade em um lar entristecido, agora trancado e de cortinas fechadas, evocando o sentimento de constante perseguição.
Com a consultoria do autor do livro autobiográfico Marcelo Rubens Paiva, o longa Ainda Estou Aqui (2024), é assinado pela dupla de roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega — sendo o segundo, coautor do texto de A Vida Invisível (2019), além de ambos já terem trabalhado com Karim Aïnouz, diretor e parceiro de roteiro de Salles em Abril Despedaçado (2001). Além de um drama familiar, o longa Ainda Estou Aqui, como sugere o título, é o “perfeito” incômodo que persiste na ausência de um pai de família, e sobretudo a crônica de um registro pessoal vivido pelo próprio Walter Salles, por conta de sua amizade com uma das filhas de Eunice, Nalu (interpretada pela atriz Bárbara Luz), tornando-o testemunha próxima da família Paiva, na juventude carioca da época.
Quando cinema fala sobre ditadura, geralmente pretende ao menos dar claridade a escuridão de fatos —, porém aqui, faz mais ao ir além de um mero lançar de luz a umas das mais dolorosas chagas de nossa história brasileira. Senão vejamos —, ao carregar uma potente mensagem de resiliência, o longa Ainda Estou Aqui não foge à regra, pois faz um alerta (obrigação implícita em qualquer obra do gênero), onde qualquer menção de aceno/flerte a um retorno de repressão fascista, devem ser imediatamente parados. E por este caminho, em meio a tantos registros amargos em preto e branco, a obra deixa uma herança, que escolheu fazê-la à sua maneira, assim Salles conseguiu.
Mais próximo do arrebatar final, é difícil não recordar a poesia atemporal de Gilberto Gil, ainda pulsante, que mais parece uma triste constatação no museu de grandes novidades de Cazuza. Assim, novamente somos (re)lembrados de que, sem sombras ou dúvidas, no clarão: sim, é preciso hoje e sempre —, ainda que enlutados e silenciosos, definitivamente, como um símbolo de resiliência, Eunice Paiva, do seu jeito, demonstrou que é possível, frente a pior demonstração de fraqueza, não se tomar pela seriedade branca/preta, cinza e vermelha, então na dúvida, escolheu estar atenta e forte — mas, sobretudo sorrir.
SERVIÇO:
Título: Ainda Estou Aqui (2024)
Gênero: Drama, Suspense
Diretor: Walter Salles
Roteirista(s): Murilo Hauser, Heitor Lorega
Elenco: Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro
Distribuidor: Sony Pictures
Duração: 136 min