Agência de talentos cria ‘clones digitais’ de artistas para proteger suas imagens
Em meio a indefinição quanto às leis sobre inteligência artificial, empresas como a CAA tomam precauções em Hollywood
- Data: 13/08/2024 11:08
- Alterado: 13/08/2024 11:08
- Autor: Redação
- Fonte: Rodrigo Salem/Folhapress
Aparelhagem da CAA Vault usada para escanear e capturar detalhes físico e de voz de seus clientes para a criação de uma réplica em inteligência artificial
Crédito:Divulgação
Ano passado, o rosto de Christopher Reeve foi recriado digitalmente para que Superman, personagem que interpretou em quatro filmes entre 1978 e 1987, fizesse uma participação especial na aventura “The Flash”. A família do ator, morto em 2004, não teve nenhum envolvimento com a decisão do estúdio e nem mesmo chegou a assistir ao longa.
A atriz Scarlett Johansson recebeu uma oferta de Sam Altman, CEO da OpenAI, uma das principais empresas de pesquisa em inteligência artificial, para “emprestar” sua voz para uma nova assistente ao usuário. Johansson recusou por “razões pessoais”, mas ficou “chocada, indignada e atônita” quando, em maio deste ano, a OpenAI lançou uma assistente virtual com uma voz “assustadoramente similar” à sua ao ponto de os amigos mais próximos da atriz não conseguirem diferenciar as duas.
“Numa época em que todos lutamos contra deepfakes e pela proteção da nossa imagem, do nosso trabalho e das nossas identidades, acredito que estes são assuntos que merecem transparência absoluta”, disse a estrela em um comunicado oficial. Apesar de Altman ter declarado ser fã de “Ela”, filme em que a atriz faz uma assistente virtual, a empresa nega ter “imitado” a voz de Johansson e teria usado uma intérprete menos conhecida para a função.
A utilização de réplicas digitais foi um dos pontos de maior desentendimento entre os estúdios e os atores na greve que parou Hollywood por 118 dias, no segundo semestre de 2023. Com o novo acordo entre as partes, os produtores que decidirem usar “dublês digitais reconhecíveis” precisarão negociar antes de cada utilização e não mais de forma indiscriminada. O uso de figuras geradas inteiramente por computação gráfica e sem base humana identificável continua sem a necessidade de autorização, algo que deve ser um dos pontos da próxima revisão de contrato, em 2026.
Como as leis de proteção de propriedade intelectual ainda estão engatinhando no campo da inteligência artificial, exemplos como estes serão cada vez mais comuns em Hollywood. Por isso, a Creative Artists Agency (CAA), uma das mais poderosas agências de talentos do mundo e que também gerencia a carreira de Johansson, decidiu dar um passo adiante: ela criou a CAA Vault, uma base de dados audiovisual que cria e armazena “dublês digitais” dos seus clientes, protegendo suas imagens e vozes e criando todo um novo mercado de artistas virtuais.
“Os talentos envolvidos podem realmente fazer parte do processo inteiro, que vai da autorização à forma como suas imagens serão utilizadas”, conta Liz Randall, chefe de operações comerciais da CAA, em entrevista à Folha de S.Paulo. “E, caso exista um uso indevido [das suas imagens ou vozes], temos um caminho para removê-lo e um argumento legal para provar similaridade da atuação. Acreditamos que o serviço que estamos oferecendo para nossos clientes é fundamental para estabelecer um bom precedente.”
O projeto CAA Vault estava em desenvolvimento interno na agência havia mais de dois anos e ganhou vida somente há seis meses. Em parceria com o Clear Angle Studios, especializado em escaneamento 3D e efeitos visuais para filmes da Marvel ou Disney, a CAA montou estúdios em Londres e Los Angeles onde a celebridade pode criar e estabelecer seu dublê digital, dos movimentos faciais à própria voz.
O nascimento do ser digital passa por quatro estágios feitos em uma única tarde. O primeiro é numa espécie de bolha cercada por câmeras e flashes que fazem um escaneamento completo do corpo em 17 tipos diferentes de iluminação e captam 200 fotos em pouco mais de um segundo de exposição. “Precisamos de algumas poses para entender a forma inteira da pessoa e como ela fica em pé, sua postura. É a referência inicial”, explica Randall sobre o processo conhecido como fotogrametria.
O segundo estágio se passa num ambiente com fundo neutro e câmeras capturando certos movimentos do corpo para a IA entender o funcionamento dos músculos, o caminhar e a ação orgânica do corpo. “É muito importante entender como o artista se move naturalmente para que o espectador saiba que é ele até mesmo olhando apenas sua silhueta”, diz a executiva.
O passo seguinte é um dos mais importantes e demorados. Envolve a captação de todos os detalhes do rosto numa máquina apelidada de Dorothy, com centenas de câmeras e flashes que, durante duas sessões, tiram cerca de 700 fotos a cada três segundos de 76 expressões diferentes da face. A quarta e última etapa é feita num estúdio de gravação, onde o artista precisa falar ao microfone centenas de frases pré-estabelecidas que fornecem uma vasta gama de sons que podem ser rearranjados para criar monólogos inteiros -até mesmo em outras línguas.
Com a criação do dublê digital, o cliente do CAA Vault possui os direitos completos da sua imagem e da sua voz. Nada pode ser usado sem a sua autorização ou pagamento de um cachê estabelecido. Isso não significa a versão digital vai trabalhar por um salário menor ou terá um contrato mais barato.
“É importante compreender que é uma performance autêntica e original do ator, então não encaramos o projeto como uma substituição de qualquer um dos nossos artistas”, afirma Liz Randall. “Pense nisto numa forma de aprimoramento ou expansão do trabalho dos talentos envolvidos.”
As possibilidades são enormes. Se um cantor famoso decidir possuir um dublê digital, ele poderá enviar vídeos com seu rosto chamando os fãs para determinado show e em qualquer língua, tudo com a tecnologia da IA. Um ator famoso chamado para refazer algumas cenas do seu próximo filme, caso não possa comparecer, poderá utilizar seu clone virtual para completar as novas atuações. No futuro, a família que controla o espólio de determinada estrela já morta terá a capacidade de permitir ou não que a imagem digital dela apareça em um filme.
Foi o que aconteceu com Carrie Fisher, a intérprete da personagem famosa da Princesa Leia em “Star Wars”. Ela morreu em 2016, durante uma nova trilogia espacial, mas a Disney pediu permissão à família para Fisher ser recriada digitalmente em no longa “A Ascensão Skywalker”, de 2019, e chegou a um acordo. “Como teria de ser”, disse ao Wall Street Journal Bryan Lourd, presidente da CAA e ex-marido de Fisher, com quem teve a filha Billie Lourd, atriz que ajudou a completar as cenas no lugar da mãe com a ajuda dos efeitos visuais.
“Os artistas estão vendo o projeto como uma maneira de investir no futuro e na proteção do seu trabalho e deles mesmos”, assegura Randall. Todo o processo de armazenagem de dados ficará sob a responsabilidade da Veritone, especializada em tecnologia de Inteligência Artificial. “As leis de direitos autorais neste cenário são novas e variam de país para país, estado para estado. Estamos estabelecendo como o mercado trabalha e garantindo que as pessoas utilizem os canais legítimos”, completa ela.
É o caso também da ElevenLabs, empresa de geração de áudio por meio de Inteligência Artificial, que fechou um acordo com espólios de astros já mortos para a utilização de suas vozes em seu app de leitura. Os usuários da plataforma, por exemplo, poderão ouvir um audiolivro narrado por Judy Garland, Burt Reynolds, Laurence Olivier ou James Dean, tudo dentro da lei e com rendimentos para as famílias ou espólios.
“É animador saber que a voz da nossa mãe está disponível para milhões de pessoas que a amam. Por meio de uma nova tecnologia espetacular oferecida pela ElevenLabs, nossa família acredita que novos fãs irão conhecer trabalho de mamãe”, disse à revista “Variety” a atriz e cantora Liza Minnelli, filha de Garland – estrela de “O Mágico de Oz”, morta em 1969.
Por outro lado, a mesma tecnologia que protege os clientes da CAA, que agencia artistas como Ariana Grande, Beyoncé, Steven Spielberg e Zendaya, pode ser utilizada para deepfakes, ou “impostores digitais”, cada vez mais realistas. A ascensão das plataformas de criação de imagens por meio de IA já está borrando os limites entre fato e ficção.
“A tecnologia está mudando todos os dias. Há muita coisa animadora até mesmo na criação de conteúdo, mas precisamos ter cuidado e permanecer firmes com os valores corretos”, diz Randall. “Apesar de não saber o que o futuro reserva, sei que fazer a coisa certa e trabalhar com ética vai compensar ao longo prazo.”