Mangabeira Unger aborda suposto pedido de habeas corpus preventivo de Bolsonaro
O professor da Universidade de Harvard (EUA) e estudioso da política brasileira e internacional, escreveu nota de esclarecimento sobre a notícia falsa a respeito de pedido de habeas corpus preventivo a favor de Jair Bolsonaro
- Data: 19/02/2024 11:02
- Alterado: 19/02/2024 11:02
- Autor: Redação
- Fonte: Assessoria
Roberto Mangabeira Unger
Crédito:Divulgação
O filósofo e teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger, professor da Universidade de Harvard (EUA) e estudioso da política brasileira e internacional, que por duas vezes foi ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil, escreveu uma nota de esclarecimento neste domingo, dia 18 de fevereiro, sobre a notícia falsa publicada a respeito de pedido de habeas corpus preventivo a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Confira:
Recentemente tomei uma iniciativa que provocou alguma discussão. Escrevo esta nota para explicar a meus amigos e aos concidadãos que se interessarem porque fiz o que fiz. Escrevo também à busca de aliados para iniciativas que considero importantes para o país.
- Faz várias décadas que o Brasil, país que transborda de vitalidade, parou. Depois de parar, se dividiu.
Lula foi eleito por um triz, contra a vontade de uma quase maioria, que preferiu apoiar a reeleição de Bolsonaro. Ele e Bolsonaro conduzem ou conduziram uma política que privilegia o rentismo financeiro, na suposição equivocada e jamais confirmada pela experiência de qualquer outro país, de que a conquista da confiança financeira resultaria em investimento que nos devolveria ao desenvolvimento. Entretanto, as contas públicas continuam a degenerar inexoravelmente, graças, inclusive, ao prêmio financeiro exigido pela política da confiança financeira.
Lula e Bolsonaro primaram por combinar o rentismo financeiro com políticas destinadas a dourar a pílula do modelo econômico para a massa de brasileiros pobres. Distribuíram o açúcar dos programas sociais sem sequer fingir que vinha junto com ações destinadas a soerguer nossa produção e a nos devolver ao crescimento. Se Lula foi mais cauteloso do que Bolsonaro em respeitar os padrões e as regras do Estado democrático de direito, tem sido também mais escancarado em abusar das práticas de cooptação. Parece acreditar que todos os brasileiros – ricos e pobres – estão à venda.
Ele e o antecessor aproveitaram nossa extravagante riqueza em recursos naturais para disfarçar nossa queda. A agricultura, a pecuária e a mineração pagam as contas do consumo urbano. O Brasil regressa ao primarismo produtivo.
Ele e o antecessor ocultaram tudo isso, desviando nossa atenção dos problemas estruturais do país para contrastes de concepções de conduta moral. A política identitária de uns é apenas a imagem invertida das guerras culturais de outros.
- O mundo está mais perto da guerra. Um Brasil dividido é um Brasil em perigo. Resistência nacional exige coesão nacional: para construir a defesa e aceitar os sacrifícios que ela impõe, formar grande força de reserva mobilizável e, quando necessário, sustentar o combate.
A divisão do país, porém, coincidiu com o empoderamento de um judiciário que aprendeu a fazer causa comum com a polícia sem levar em conta o efeito de suas investidas investigatórias sobre as instituições que asseguram nossa coesão. Não se hesita em submeter a constrangimento gente que dedicou suas vidas à defesa do Brasil. O próximo alvo será o Congresso Nacional?
- Como se levanta um país, em condições como estas que descrevi? Nos países mais populosos do mundo, a maioria do povo continua a ser pobre e desorganizada, mas seu horizonte de aspiração é pequeno burguês. Esta pequena burguesia subjetiva — subjetiva porque ainda luta para virar o que quer ser — busca, por falta de outras opções, o pequeno empreendimento familiar isolado e arcaico. É anseio que não resulta em produtividade crescente e socialmente inclusiva.
Para que ocorra ”milagre de crescimento”, precisa acontecer outro abalo: tem de surgir dentro da elite, composta predominantemente por rentistas, uma contra-elite, de orientação produtivista e nacionalista. E esta contra-elite há de ganhar o poder e oferecer à maioria, composta pela pequena burguesia subjetiva, alternativas condizentes com as realidades da época da economia do conhecimento e instrumentos para qualificar os serviços e a produção primitivos a que ela continua, por falta de alternativas, reduzida.
Onde está a pequena burguesia subjetiva – a multidão de emergentes e batalhadores, que hoje forma a vanguarda de nosso povo?
Está predominantemente nos movimentos evangélicos, com sua teologia de superação, e nos movimentos políticos identificados pelo vocabulário político convencional — vocabulário que nosso povo despreza – como direita. Toda a taxonomia herdada, de direita e esquerda, ofusca esses fatos. Temos que descartá-la até que a reformemos.
Estava na hora, já que uma esquerda que, sem qualquer projeto de qualificação de nosso aparato produtivo e de nossa gente, se ajoelha diante do altar do financismo fiscalista, distribui aos pobres as sobras de um orçamento dedicado, principalmente, a enriquecer os ricos, importa dos Estados Unidos uma política identitária sem nexo com nossa realidade, e prima por rejeitar qualquer reconstrução de nossas instituições econômicas e políticas, nunca mereceu ser chamada de esquerda.
- À luz desses conceitos, comecei nos últimos meses a conversar com lideranças políticas e religiosas dos emergentes e dos batalhadores, na esperança de, com elas, ajudar a abrir um caminho que, sem preocupação com os rótulos, possa unir nosso Brasil dividido em torno de um projeto produtivista e nacionalista. Essas conversas acabaram levando a dois diálogos com o ex-Presidente Bolsonaro que coincidiram com o período em que se discutiu seu possível envolvimento no preparo de um golpe de estado. Apenas conheço o que apareceu nos jornais a esse respeito. As provas citadas me parecem frágeis, mas não era, e não é, minha tarefa avaliá-las.
Nessas conversas, o ex-Presidente se disse injustiçado. Eu lhe respondi que não era essa minha preocupação e que o que não quero é que o Brasil vire o Paquistão. A condenação e a prisão da maior liderança oposicionista só dificultariam a tarefa de unir o Brasil.
Como todo jurista brasileiro, admirava a iniciativa de Rui Barbosa em impetrar habeas corpus preventivos a favor de alguns de seus adversários. Mas colegas e amigos que atuavam nessa área depois me mostraram que há jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que praticamente barra este caminho. Com essa jurisprudência, nossa Suprema Corte impede os vivos de imitar o glorioso exemplo dos mortos, como se quisesse lembrar a nós, brasileiros contemporâneos, que nosso destino é o do apequenamento. Mais uma vez deu razão a meu tio-avô, João Mangabeira, quando ele disse que o poder judiciário foi o que mais faltou à República.
- Cada um fará o que entender ser correto e factível. Mas eu não tenho nem pretexto para desistir. No Brasil de hoje, até os donos dos bancos sentem medo. Ocupo cadeira vitalícia numa universidade estrangeira e não tenho qualquer interesse material a defender no país. Se eu não puder resistir e lutar, quem pode?
Trabalhemos fortes, firmes e sobretudo juntos pela hora da ressurreição nacional. Ela virá.
Roberto Mangabeira Unger
Roberto Mangabeira Unger foi, por duas vezes, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil, nos governos Lula e Dilma, e é autor de obras sobre a sociedade que já repercutiram em grande parte do mundo. Nas eleições de 2022, trabalhou junto ao candidato Ciro Gomes, de quem é bastante próximo há anos e com quem divide a autoria do livro “O Próximo Passo: uma Alternativa Prática para o Brasil”, pela Editora Topbooks (1996).
Sua obra de pensamento social, considerada uma alternativa radical ao marxismo, foi descrita por Geoffrey Hawthorn, da Universidade de Cambridge, como “a teoria social mais poderosa da segunda metade do século XX”. Perry Anderson descreveu-o como “inteligência filosófica do Terceiro Mundo que virou a mesa como crítico e profeta do Primeiro Mundo”.
Unger é autor de diversos livros, como “Depois do colonialismo mental: repensar e reorganizar o Brasil” e “A economia do conhecimento”, ambos pela editora Autonomia Literária, publicados em 2018.
Atualmente, reside em Cambridge, Massachusetts, onde leciona na Universidade de Harvard e desenvolve suas outras atividades profissionais.
https://linklist.bio/mangabeiraunger
https://www.instagram.com/robertomangabeira.unger/
Bibliografia
Obras próprias
- Conhecimento e Política, Editora Forense, 1978.[
- O Direito Na Sociedade Moderna: Contribuição à Crítica da Teoria Social, Civilização Brasileira, 1979.
- A Alternativa Transformadora: como democratizar o Brasil. Guanabara Koogan, 1990.
- Paixão: um Ensaio Sobre a Personalidade, Boitempo Editorial, 1998.
- Democracia Realizada: a Alternativa Progressista, Boitempo Editorial, 1999.
- A Segunda Via: Presente e Futuro do Brasil, Boitempo Editorial, 2001.
- Política: os Textos Centrais, Boitempo Editorial, 2001.
- O Direito e o Futuro da Democracia, Boitempo Editorial, 2004
- Necessidades Falsas, Boitempo Editorial, 2005.
- O que a esquerda deve propor, Civilização Brasileira, 2008.
- A Reinvenção do Livre-Comércio: A Divisão do Trabalho no Mundo e o Método da Economia, Editora da FGV.
- Depois do colonialismo mental: repensar e reorganizar o Brasil, editora Autonomia Literária, 2018.
- A Economia do Conhecimento, editora Autonomia Literária, 2018.
- O Homem Despertado, Civilização Brasileira; 1ª edição 2020 (tradução do livro originalmente publicado em inglês em 1997)
- Governar o Mundo sem Governo Mundial, editora Leya; 1ª edição,2022.
Obras em parcerias
- Participação Salário e Voto: um Projeto de Democracia para o Brasil, com Edmar Lisboa Bacha, Editora Paz e Terra, 1978.
- O Futuro do Progressismo Americano, com Cornel West, Editora Revan.
- O Próximo Passo: uma Alternativa Prática para o Brasil, com Ciro Gomes, Editora Topbooks, 1996.