DPU pede indenização de R$ 20 milhões para povo indígena de recente contato em MT

Os Enawene Nawe sofreram violência física, patrimonial e racismo por parte de grandes empresas

  • Data: 14/12/2023 16:12
  • Alterado: 14/12/2023 16:12
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Assessoria
DPU pede indenização de R$ 20 milhões para povo indígena de recente contato em MT

Crédito:Reprodução

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A Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou, nessa quarta-feira (13), Ação Civil Pública (ACP) contra as empresas Hydra Participações e Investimentos S/A (Hydra), Telegráfica Energia S/A (PCH Telegráfica), Campos de Júlio Energia S/A (PCH Campos de Júlio) e Rondon Energia S/A (PCH Rondon), requerendo o pagamento de indenização ao povo indígena de recente contato Enawene Nawe no valor total de R$ 20 milhões, sendo R$ 10 milhões a título de danos morais, em virtude de violências praticadas contra os indígenas, a serem depositados na conta da Associação Indígena Enawene Nawe, e mais R$ 10 milhões por danos morais coletivos, devido à grave violação de Direitos Humanos cometida, a serem revertidos para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e para a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Os valores deverão ser destinados especificamente para políticas públicas do povo indígena Enawene Nawe.

Os atos de violência contra os Enawene Nawe, incluindo mulheres, idosos e crianças, foram praticados pela equipe de segurança privada das empresas citadas nos dias 25 e 26 de junho deste ano no Município de Campos de Júlio, em Mato Grosso. 

Considerando se tratar de povo indígena de recente contato e a necessidade de diálogo interétnico e intercultural, além da indenização, a DPU, entre outros pedidos, requer também a designação de audiência de Conciliação e de inspeção judicial no Território Indígena, “pois só com a ida ao território será possível compreender um pouco do modo de vida do povo Enawene Nawe e, só assim, ocorrerá um julgamento justo e intercultural”.

Entenda o casoO Povo Enawene Nawe é uma comunidade indígena de recente contato e que, sendo assim, ainda preserva suas tradições culturais e religiosas. É uma das poucas comunidades que organizam seu calendário em torno de quatro rituais. Um deles é o ritual da Yaokwa, que possui grande relevância para eles. Além de ser o de maior duração, envolve a oferta de peixes (alimento considerado nobre pelos Enawene Nawe) para as entidades que representam sua visão cósmica do mundo.

Com a instalação de usinas hidrelétricas no Rio Juruena e o consequente impacto na hidrografia e comportamento reprodutivo dos peixes, a oferta do animal tornou-se escassa. Os Enawene Nawe possuem conhecimento para captura de peixes através da construção de barragens, mas, mesmo assim, não mais conseguiam pesca suficiente para a realização do ritual e para a manutenção de sua subsistência conforme seu modo de vida tradicional. Ações judiciais e até mesmo um acordo foi tentado entre as partes, mas sem chegar a uma solução que respeite o modo de vida, cultura, religião e tradições do povo indígena.

Dia 25 de junhoDiante disso, em 25 de junho de 2023, com o objetivo de se reunirem com os dirigentes dos empreendimentos para tentar chegar a um novo acordo que solucionasse o impasse existente, alguns membros da etnia Enawene Nawe dirigiram-se à sede da PCH Rondon e outros foram de barco até a PCH Telegráfica, ambas na cidade de Campos de Júlio no Mato Grosso. Entre eles, mulheres, idosos e crianças. Foram todos desarmados, com a intenção de realizar um protesto pacífico. Não conseguiram, no entanto, sequer realizar a manifestação.

Alguns indígenas acamparam a aproximadamente 17 km de distância da PCH Rondon e se preparavam para o protesto pacífico. Por volta das 18h, foram abordados de forma agressiva por cerca de cinco seguranças da PCH, que se aproximaram em carro particular (não oficial) do Grupo Bom Futuro, atual proprietário das empresas envolvidas nessa ação judicial. Todos eles tinham os rostos cobertos e nenhuma identificação e, apesar dos sucessivos anúncios dos indígenas de que só gostariam de conversar com a direção da usina, os seguranças os ameaçaram de morte e os atacaram com bombas de pimenta, arma de choque e disparos de balas de borracha. Sem possibilidade de defesa, os indígenas correram para a mata, em sinal de evidente medo e desespero, abandonando seus veículos, pertences e documentos pessoais.

Ainda no dia 25, sem qualquer provocação de sua parte, os indígenas que foram de barco para a PCH Telegráfica também foram recebidos de forma truculenta e injustificada pela equipe de segurança das empresas com disparos de balas de borracha. A maioria sequer conseguiu sair do barco e pisar em terra. Tão logo começaram os disparos, iniciaram o retorno. Em momento nenhum a equipe de segurança aproximou-se pacificamente antes de iniciar o uso de violência. Toda a abordagem ocorreu de forma extremamente desproporcional e irrazoável. Por seu lado, os Enawene Nawe, mesmo diante de tanta violência, não opuseram qualquer resistência.

Mesmo assim, um dos membros da comunidade indígena chegou a receber mais de 20 projéteis apenas na região das costas. Vários tiveram que ser hospitalizados para tratar das lesões provocadas pelos tiros. Sofreram ainda com ofensas verbais marcadas pelo racismo contra povos indígenas. Os seguranças da PCH gritavam ameaças de morte e xingamentos direcionados à coletividade, como: “índio precisa morrer”; “índio é tudo vagabundo”; “vamos enterrar os índios aqui”; “índio vai morrer tudo”, “índio vagabundo”, “índio viado”, “índio preguiçoso”, “índio vai morrer”, “miseráveis”, “índio filho da puta”.

Dia 26 de junhoDiante do ataque sofrido, os indígenas resolveram, no dia seguinte (26), se organizar em outro local. Precisavam de um que tivesse água disponível e, por isso, encaminharam-se com suas caminhonetes para averiguar a região. Estavam estacionados a 1 km de Rondon, quando os seguranças da PCH surgiram. Os Enawene Nawe levantaram as mãos com a intenção de demonstrar que a manifestação era pacífica, mas os seguranças passaram a atacá-los com espingarda de balas de borracha, pistolas com projéteis explosivos, bombas de gás e arma de choque.

As bombas de gás de pimenta fizeram os indígenas ficarem tontos. Choravam e vomitavam. Em todos os momentos que tentavam retornar às caminhonetes para recuperar suas coisas e sair do local, foram impedidos por mais saraivadas de tiros. Os manifestantes receberam ordens para abaixar a cabeça e se deitar no chão, ao que se recusaram. Um deles foi então agredido com um empurrão que acarretou lesão em seu joelho. O sobrinho dele também ficou ferido.

Uma servidora da Funai tentou negociar auxílio a eles para que fossem fornecidos água e alimentos, já que os que haviam levado consigo estavam inacessíveis ou foram perdidos durante a ação violenta da equipe de segurança. A servidora foi recebida, no entanto, com rispidez e desprezo por parte da Polícia Militar e dos prepostos das empresas envolvidas. Ou seja, além de toda a violência física, verbal e psicológica, os indígenas ainda tiveram que enfrentar o descaso para o fornecimento de água e alimentos para sua manutenção básica, o que lhes era nada menos do que devido.

Um dos indígenas conseguiu, então, virar uma caminhonete e algumas pessoas conseguiram entrar na carroceria e fugir. Muitos, porém, precisaram correr para o mato. Após esse ataque, pelo menos dois indígenas foram atendidos no Hospital Santa Marcelina de Sapezal. O primeiro, conforme relato da Funai, tinha balas de chumbo que precisaram ser removidas de suas costas e o segundo machucou a cabeça, as mãos e os joelhos.

Também no dia 26, alguns indígenas que estavam na aldeia Kotakowinakwa/Doloiwikwa e haviam percebido sobrevoos na noite anterior, avisaram aos demais que estavam fora da aldeia, informando estarem muito assustados. Os Enawene que se encontravam na mobilização na PCH não tinham como se deslocar porque seus veículos estavam sob a posse dos seguranças privados.

Os seguranças atiraram nos veículos e, em seguida, despejaram gasolina e o queimaram. Nessa ação, os indígenas perderam também alimentos, como 100 unidades de sucos e 50 frangos que estavam dentro do carro. Além de atirarem e furarem os pneus dos veículos, os seguranças tentaram removê-los da entrada da usina com um trator e, ao final, atearam fogo. No carro, também se encontravam documentos de alguns dos indígenas, que acabaram por se perder no fogo.

A desmobilização da PCH Rondon aconteceu no dia 27 logo pela manhã e, pouco após o meio-dia, muitos Enawene já se encontravam em Vilhena (RO). Foram levados em van fretada pelos empreendedores proprietários das PCHs. Muitos membros deste grupo queixaram-se de estarem sem seus documentos pessoais e outros pertences, pois teriam ficado dentro dos seus veículos, que, por sua vez, teriam ficado em poder dos seguranças privados.

Boletim de Ocorrência em dissonância com os fatos registradosAlém de atos de violência física, com tiros de borracha, queima de veículos, documentos e até alimentos, seguranças encapuzados praticaram racismo e deixaram todos os indígenas sem acesso à água durante os dias 25 e 26 de junho de 2023. Mesmo assim, em total dissonância com os fatos descritos em diversos registros de ocorrência, em vídeos e no relatório da Funai, ainda no dia 25, as empresas fizeram Boletim de Ocorrência para sustentar a narrativa de que teriam sido invadidos e coagidos pelos Enawene Nawe. O objetivo era produzir alguma justificativa para a reação violadora de Direitos Humanos de seus seguranças com a denúncia de uma suposta tentativa de invasão de propriedade privada. O fato é que não houve quaisquer danos às estruturas e ao pessoal das empresas. Por outro lado, os Enawene Nawe sofreram não só diversos prejuízos materiais com o conflito (que posteriormente foram reparados pelas empresas), como principalmente lesões físicas e psicológicas.

Ações judiciaisEm 2007, a Hydra, a PCH Telegráfica, a PCH Campos de Júlio e a PCH Rondon) ajuizaram ação de reintegração de posse contra o povo Enawene Nawe na Justiça Estadual, ação que acabou sendo repassada para a Justiça Federal, devido aos enormes danos causados pelas empresas à comunidade indígena. Já na Justiça Federal, foi firmado acordo flagrantemente lesivo ao povo indígena e que não resolveu o principal problema decorrente da construção das PCH’s e Hidrelétricas: a falta de acesso a peixes para a realização de rituais.

Além do processo de reintegração de posse, em junho de 2023, as empresas ingressaram com ação de interdito proibitório, alegando que os Enawene Nawe estariam ameaçando “invandir” as PCHs, mas, na verdade, foram os indígenas que sofreram grave violação de Direitos Humanos.

Para entender a situaçãoPara se avaliar a situação de forma justa, é importante ter em mente que as comunidades indígenas são grupos com mundos próprios, com signos e valores complemente diferentes de uma sociedade judaico-cristã ocidental. Sua interação com o ambiente (terra, água, fauna e flora) não é necessariamente convergente com a relação socioeconômica (conversível em pecúnia e objetificante) que muitos têm com a natureza. Também é relevante lembrar que, no Brasil, há mais de 300 etnias e 270 línguas diferentes e que, entre elas, há elementos culturais muito distintos e até contraditórios entre si. Por isso mesmo, não podem ser comparadas.

O Povo Enawene Nawe teve o primeiro contato com a nossa sociedade em 1974 por meio de missionários jesuítas. Até 2007, não tinha acesso por terra, apenas por barco. Somente com a construção da MT 319 e do ramal que conecta à aldeia é que os Enawene Nawe passaram a ter de fato contato mais próximo da cidade, o que se deu a partir de 2011. Portanto, trata-se de um povo de recente contato.

Em sua estruturação de mundo, os Enawene Nawe baseiam sua subsistência e existência em rituais que ocorrem ao longo de todo o ano, quase que de forma ininterrupta, em uma profunda relação de subordinação aos espíritos. Para eles, o peixe, para além de representar a principal fonte de proteína animal, é considerado não apenas um alimento nobre e desejado, mas também um símbolo significativo da oferenda às entidades que compõem sua visão cósmica do mundo. Ou seja, o peixe está simbolicamente em diversas dimensões de suas vidas.

O peixe desempenha um papel central como oferenda aos enore-nawe, como uma expressão de gratidão pela proteção que esses espíritos oferecem à comunidade humana, e é também um meio de se proteger contra doenças e a morte, sendo oferecido como tributo aos yakairiti. Os integrantes da comunidade entendem que sua função no plano terrestre é manter a harmonia deles com estes dois mundos. Os Enawene Nawe vivem para a diplomacia com o mundo espiritual e os peixes são imprescindíveis para este contato. Estes indígenas vivem e morrem em função da espiritualidade. A importância do acesso da comunidade ao Rio Juruena (MT) e seus recursos é, portanto, não só material, mas também espiritual.

Destaca-se ainda que o período de um ano é marcado para eles pela realização de quatro rituais: Salumã, Yaokwa, Derohe e Kateoko. O ritual Yaokwa foi reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Dano moral e capacidade financeira do violador de direitos humanos“Nada, absolutamente nada, justifica a violência física armada perpetrada contra pessoas desarmadas e rendidas, no qual se encontravam mulheres, crianças e idosos. Nada justifica também a violência patrimonial causada, como a queima de veículos, alimentos e documentos. É nítida a violação da dignidade da pessoa humana, valor que funda o Estado Democrático brasileiro (art. 1º, III, da Constituição da República), ainda mais considerando as preocupações do Povo Enawene Nawe quanto à manutenção do próprio modo de existência e a evitar um genocídio cultural”, destaca a DPU na ACP.

“A quantidade de tiros de balas de borracha que foram atiradas nos indígenas é imensurável, ocasionando grave risco à saúde, gerando diversas lesões corporais, conforme se verifica nos vídeos, fotos e também documentos anexados aos autos. O povo Enawene Nawe, como já asseverado, é um povo indígena de recente contato, portanto, o dano sofrido é de extrema gravidade. Não se pode olvidar que a vida dos Enawene Nawe sofreu grave risco, pois sabe-se que estamos diante de o uso de um armamento menos letal, todavia quando se dispara milhares de tiros de bala de borracha/chumbo em indígenas que não portavam qualquer arma, assume-se o risco de ocorrer um resultado fatal. Felizmente não ocorreu óbito, todavia, existia risco real de algum indígena ser ferido por balas de borracha e vir a óbito, basta olhar como ficaram os corpos cravejados de chumbo dos indígenas”, é destacado ainda na peça judicial.

Além da gravidade dos fatos, na fixação do valor para compensação pelo moral sofrido pelo povo Enawene Nawe, é importante que seja levada em consideração a capacidade financeira do violador de Direitos Humanos.

A Hydria Participações e Investimentos S.A, conforme consta em seu próprio site, é uma holding investidora em ativos de geração de energia elétrica, detentora de cinco subsidiárias integrais: Campos de Júlio Energia S.A, Parecis Energia S.A, Rondon Energia S.A, Telegráfica Energia S.A e Sapezal Energia S.A., proprietárias, respectivamente, das seguintes pequenas centrais hidrelétricas: Cidezal, Parecis, Rondon, Telegráfica e Sapezal. Todas as pequenas centrais hidrelétricas estão localizadas no rio Juruena, no estado do Mato Grosso, afluente pela margem esquerda do rio Teles Pires, formados do rio Tapajós, bacia hidrográfica do rio Amazonas.

Não se está, portanto, diante de uma empresa vulnerável, mas sim de uma holding que, inclusive, foi adquirida pelo Grupo Bom Futuro, uma grande trader do agronegócio brasileiro. Sem adentrar no patrimônio e na capacidade econômica de todo Grupo Bom Futuro, apenas focando na Hydria Participações e Investimentos S.A, verifica-se que, em 2020, o Patrimônio Líquido da empresa era de R$ 496.414 milhões e o lucro líquido, também em 2020, foi de R$ 77.814 milhões.

Por conta da gravidade da violação de Direitos Humanos e da capacidade econômica da empresa violadora, chegou-se ao pedido de condenação no valor de R$ 10 milhões, a título de danos morais a serem revertidos ao povo indígena Enawene Nawe.

Dano moral coletivoO dano moral coletivo, nessa situação, decorre da violação de inúmeros direitos fundamentais decorrentes do art. 5º (integridade física, propriedade, não-discriminação) da Constituição da República, em desfavor de um grupo que é especialmente protegido pelo Estado. Houve violação de valores que transcendem aos interesses de grupo e constitui violação aos valores da sociedade.

Nos termos do art. 1º, III, da Constituição da República, o Brasil é fundado na dignidade da pessoa humana e constitui objetivo da República (art. 3º, I e III, da CRFB) construir uma sociedade livre, justa e solidária em que haja promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No caso em questão, a violência física, patrimonial e a discriminação praticadas contra indígenas de recente contato desarmados, incluindo mulheres, idosos e crianças, incute em violação a todos estes valores.

Pela ocorrência de lesão injusta e intolerá/vel a valores fundamentais da sociedade, para indenização moral à coletividade, chegou-se ao pedido de condenação no valor de R$ 10 milhões por danos morais coletivos, a serem destinados à Funai e à Secretaria Especial da Saúde Indígena, quantia que deverá ser revertida em políticas públicas para os povos indígenas Enawene Nawe.

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  • Data: 14/12/2023 04:12
  • Alterado:14/12/2023 16:12
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Assessoria









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