Bairro da Liberdade vai ganhar memorial e mirante para Capela; conheça história
A edificação foi desenhada por uma equipe de arquitetos, professores e estudantes de arquitetura da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap)
- Data: 08/06/2023 20:06
- Alterado: 08/06/2023 20:06
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Crédito:TV Globo/Reprodução
A Prefeitura de São Paulo elegeu o projeto arquitetônico que vai dar materialidade ao Memorial dos Aflitos, no bairro da Liberdade, região central da capital paulista. A edificação foi desenhada por uma equipe de arquitetos, professores e estudantes de arquitetura da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), que foi a vencedora do concurso promovido pela própria administração pública, no final do ano passado, para definir o modelo do monumento.
A edificação vai ser erguida em um lote estreito e longo, entre a Rua Galvão Bueno e a Rua dos Aflitos. A diferença de altura entre as extremidades é de 4,5 metros, e o Memorial funcionará como um caminho contínuo que ligará as duas vias. O projeto prevê que o espaço tenha três andares conectados por escada e uma plataforma hidráulica, duas praças – uma em cada entrada do Memorial -, e que o piso superior, na altura da Galvão Bueno, sirva de mirante para a Capela dos Aflitos, que também foi valorizada no projeto.
A Capela dos Aflitos é tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).
O monumento será construído estrategicamente no Sítio Arqueológico Cemitério dos Aflitos, nas adjacências da Capela, como forma de fazer uma reparação histórica a grupos de populações negras e indígenas que viveram na região, mas que, segundo historiadores e movimentos sociais, tiveram essa ocupação excluída dos registros oficiais da cidade.
“Poucos sabem que a Liberdade era um bairro negro”, diz Marcio Coelho, arquiteto e professor da FAAP, um dos responsáveis por coordenar a equipe vencedora do concurso. “O projeto que desenvolvemos pretende dar o devido reconhecimento a grupos sociais, no caso a população negra e indígena, que não eram contemplados por essa história oficial, pois não eram entendidos como dignos de serem incluídos”, explicou o docente.
Para o historiador Wesley Vieira, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Fundação União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), o memorial é uma forma de materializar a narrativa de povos ancestrais que viveram na região e também são importantes para a história da capital paulista.
“São Paulo não deve ter narrativa única, de ser uma cidade fundada apenas pelos bandeirantes e desenvolvida pelos imigrantes. Mas (precisa ter) uma narrativa mais plural, de um lugar que foi criado e também desenvolvido por negros, indígenas e brasileiros de vários tons de pele, raças e culturas”, diz o historiador.
O Sítio Arqueológico Cemitério dos Aflitos foi descoberto em 2018, durante a demolição das obras de um antigo centro comercial que estava sendo construído de forma irregular na Liberdade. No local, foram encontradas nove ossadas humanas datadas dos séculos 18 ou 19, e que podem ser uma prova histórica da presença de populações negras indígena na região. Desde a descoberta, movimentos negros reivindicaram um espaço para lembrar de que o território foi ocupado por essas populações.
“É importante a gente incluir essa outra história, negra e indígena, que não está na memória oficial. Não existe uma contraposição entre as memórias (de outros povos que habitaram e vivem na Liberdade). Eu acho que são novas camadas que a cidade vai ganhando e que torna São Paulo ainda mais rica do ponto de vista cultural e histórico”, diz o arquiteto.
O resgate histórico também se dará partir dos materiais que vão ser usados na construção. As paredes laterais, por exemplo, serão feitas de taipas para remeter às antigas técnicas construtivas de São Paulo. A base da edificação será feita de concreto ciclópico formado por pedras, e a cobertura do Memorial levará uma estrutura de madeira que revisita as construções passadas.
De acordo com o arquiteto Coelho, a obra do Memorial não deve impactar a rotina da população que vive e trabalha nas redondezas. “É normal ter barulho e poeira, mas a rotina da região não deve mudar tanto porque é uma construção restrita ao terreno da Prefeitura”, diz. As obras ainda não têm prazo para começar.
No momento, estão sendo feitas reuniões entre os autores do projeto, a Secretaria Municipal da Cultura e a comunidade local visando o detalhamento da proposta. A Prefeitura ainda depende do desenvolvimento do projeto executivo, que tem prazo de entrega de 90 dias, para lançar o edital de contratação da empresa que vai executar a obra. O valor apresentado no edital do concurso para custear o empreendimento é de R$ 3,6 milhões.
A ideia é que o Memorial dos Aflitos seja, de acordo com Coelho, um espaço de encontro, “essencialmente público”, e que possa chamar a atenção por contar uma história que, por tempos, “foi desprezada e apagada”. Além do acervo que será instalado – a escolha do conteúdo expositivo caberá à Secretaria Municipal de Cultura -, o arquiteto espera que o monumento também receba manifestações e celebrações culturais voltadas à memória dos povos homenageados.
A equipe vencedora é composta pelos arquitetos e professores de Arquitetura da Faap Ana Marta Ditolvo, Eduardo Colonelli e Marcio Novaes Coelho Jr.; pelo arquiteto formado Arthur dos Santos da Silva; e pelos estudantes Fernanda Silva, Luigi Miguel Thiago Santos de Oliveira, Vitoria Vertoni e Yannick Kablan.
História do Cemitério dos Aflitos
O Cemitério dos Aflitos foi inaugurado em 1775, e teve a sua construção motivada pelo aumento de óbitos provocados por surtos de doenças que atingiram São Paulo em meados do século 18 e 19. Seu terreno cobria todo o quarteirão que hoje é delimitado pelas rua da Glória, Galvão Bueno e dos Estudantes.
O local onde atualmente é bairro da Liberdade acomodava, além do cemitério, uma prisão, uma forca e o pelourinho. “Esses quatro elementos formavam um complexo de sentenciamento, tortura, morte e enterro”, explica Wesley Vieira, historiador e membro da Unamca.
Na época, a região era considerada semirrural e pouco urbanizada mas com um posição geográfica importante: era a porta de entrada e saída da cidade para o sul do País e também para o litoral paulista. “Esse território vai servir como rota de fuga para vários escravizados. Então, essa região, assim como Bixiga, Bela Vista e Jabaquara, já eram lugares de ocorrência da presença negra, de pessoas escravizadas, sobretudo para fugas e esconderijos”, diz o Vieira.
Com isso, segundo o historiador, durante os mais de 80 anos em que esteve ativo, o Cemitério dos Aflitos serviu de destino para o sepultamento das pessoas marginalizadas, excluídas socialmente e que não eram cristãos ou não pertenciam a nenhuma irmandade religiosa. Na sua maioria, eram negros e indígenas com histórico de escravização.
“Em 1775, os enterros eram feitos nos adros das igrejas, ou dentro delas, ou então no cemitério das irmandades religiosas. Aqueles e aquelas que não faziam parte da igreja católica, portanto não eram brancos e não tinham posses e que não fazia parte de alguma irmandade, tinham como destino o Cemitério dos Aflitos”, conta o historiador.
Em 1858, é inaugurado o Cemitério da Consolação, o primeiro cemitério público de São Paulo, levando ao fechamento e desativação do Cemitério dos Aflitos. De acordo com os registros históricos, todas as ossadas sepultadas no antigo cemitério foram transportadas para o recém-aberto. Entretanto, as descobertas recentes de 2018 de remanescentes humanos na Liberdade podem apontar para a necessidade de uma revisão da história oficial.