Conflitos no Iêmen geram nova migratória no sul do país
Organizações internacionais chamam atenção para migração em massa de centenas de famílias da província de Al Dhaela, além de milhares de civis atingidas pelos intensos conflitos desde 2014
- Data: 29/11/2019 22:11
- Alterado: 29/11/2019 22:11
- Autor: Redação
- Fonte: Artigo de Cauê Colodro
Crédito:
O Al Thawra Modern General Hospital é um dos maiores e mais modernos centros hospitalares de Sanaã, capital do Iêmen, pequeno país ao sul da Arábia Saudita que marca a divisão entre o continente africano e o Oriente Médio. No início de outubro, o hospital Al Thawra recebeu vítimas de um bombardeio aéreo na cidade de Qataba, sul do Iêmen, no qual 16 civis foram mortos; entre eles, sete crianças. No começo de novembro, um pouco mais ao Sul na província de Al Dhalea, centenas de famílias deram início a uma nova onda de migração em massa, andando quilômetros à noite por territórios repletos de munições que não explodiram, sem alimento ou água. Segundo a International Organization for Migration, 65 mil iemenitas deixaram suas casas entre janeiro e setembro de 2019.
Os números se somam às milhares de pessoas sem comida, água e assistência médica devido ao intenso conflito armado internacional que explodiu no final de 2014, após o grupo armado organizado Houthi depor o presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi.
As disputas religiosas e territoriais tornaram os bombardeios aéreos uma prática comum no território iemenita. A coalizão formada por Arábia Saudita e outros países árabes – com suporte dos Estados Unidos – tentam retomar a capital e parte do território dominado pelos Houthis, acusados de receberem ajuda do Irã. A ONU estimou ao menos 110 bombardeios em três províncias iemenitas em apenas uma semana no ano de 2018, lançados por forças armadas da coalizão liderada pela Arábia Saudita, enquadrada por violar direitos humanos e caracterizar crimes de guerra por atacar hospitais e causar mortes de civis.
Tais crimes são regulados pelo Direito Internacional Humanitário (DIH), ramo do Direito Internacional que estabelece normas para limitar hostilidades e o sofrimento causado por conflitos armados. O número de bombardeios no Iêmen, que se traduz em vítimas, é convertido em lucro para os maiores comercializadores de armas do planeta; entre eles, o Brasil.
“A relação entre a indústria armamentista local e a ratificação de tratados que de alguma maneira ou de outra prejudica essa indústria, é uma tensão que os países em geral sofrem”, afirma Tarciso Dal Maso Jardim, professor de Direito Internacional Humanitário e Consultor Legislativo do Senado Federal em coletiva de imprensa no escritório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em São Paulo.
Tarciso é autor de O Brasil e o Direito Internacional dos Conflitos Armados (safE, 2006) e ressalta que o país sempre assumiu uma postura diplomática positiva em relação ao comércio de armas, sendo um dos primeiros a assinar o Tratado Sobre o Comércio de Armas (2013), ratificado pelo governo Temer em agosto de 2018. Porém, anos antes, o Brasil foi um dos poucos países que não assinaram o parecer da Convenção Sobre Munições Cluster em 2008, que bane a fabricação, comercialização e fabricação desse tipo de arma. Elas foram encontradas em solo iemenita em 2015, fabricadas pela empresa brasileira Avibras, conforme detalhou o advogado Jefferson Nascimento em artigo publicado no Medium.
A munição cluster consiste em um míssil capaz de carregar diversas sub-munições programadas para explodir antes, durante ou após o impacto. Para Tarciso Dal Maso, esse tipo de munição viola os princípios do Direito Humanitário Internacional. “A cluster deriva da ideia de mina terrestre por ser um artefato programado para explodir, mas não explode, e fica um resíduo explosivo que atinge alvos não plenamente identificáveis, com alto risco de atingir populações civis”.
Não foram apenas as munições cluster de fabricação brasileira que foram encontradas no Iêmen. Como escreveu a repórter Valeria Saccone para o portal Es Global, dois executivos da empresa Taurus – um dos maiores fabricantes de armas de fogo da América Latina – foram investigados pela venda de 8.000 pistolas a um intermediário iemenita, Fares Mohamed Hasán Mana’a, que teria repassado o carregamento para rebeldes do movimento Houthi. Valeria também reporta as armas brasileiras utilizadas nos protestos da Primavera Árabe, em 2011, e pela polícia turca em Istambul para reprimir violentamente as manifestações contra o governo de Ergodan.
De acordo com a plataforma Comexstat de comércio exterior, o Brasil faturou 342 milhões de dólares na exportação de armas em 2018, com Estados Unidos, Arábia Saudita e Filipinas como principais clientes. O comércio de armas é regulamentado pela Política de Exportação e Importação de Produtos de Defesa, a Pnei-Prode.
“Isso deveria servir para o Brasil manter certa cautela com o comércio de armas e verificar se os países compradores exibem evidente violação do Direito Internacional Humanitário”, afirma a promotora do Ministério Público Militar do Rio de Janeiro, Najla Nassif Palma. Em entrevista por telefone, a promotora especialista em Direito Internacional Humanitário diz que no Tratado Sobre Comércio de Armas “há referências expressas sobre os cuidados para que não se contribua para violações de Direitos Humanitários e Direitos Humanos”.
Apesar das terminologias semelhantes, Najla explica que o Direito Internacional Humanitário se difere por ser aplicado em tempos de conflito armado, enquanto o Direito Internacional dos Direitos Humanos é válido a todo o tempo. “Hoje, a doutrina complementarista é a mais aceita e inclusive é preconizada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, e o que é acatado pela ONU é que essas temáticas se complementem ainda mais em conflitos armados internos, onde existem menos normas para resguardar as vítimas do conflito”.
Ao lado da promotora de Justiça Militar Andrea Blumm Ferreira, Najla Nassif elaborou a denúncia contra os 12 militares responsáveis por alvejar e matar o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador de recicláveis Luciano Macedo, no dia 8 de abril de 2018. No documento, as promotoras detalham os 257 disparos feitos pelos militares e como a ação equivocada ocorreu.
Najla explica que, apesar de viver graves situações de violência armada, o Brasil não se encaixa nos critérios do Direito Internacional Humanitário para ser considerado um país com conflito armado não internacional. Mas ressalta que os princípios do DIH “podem servir como referencial e uma diretriz de humanidade”.
Para Tarciso Dal Maso, a aplicação do DIH no Brasil também assume caráter referencial e preventivo. “Não se educa um exército depois de um conflito, isso é feito em tempos de paz. A educação, a prevenção de armas, a identificação de bens culturais. Se previne criando protocolos em tempos de paz que auxiliam de maneira geral”, comenta.
“Embora o Brasil não esteja envolvido em um conflito armado, essa temática do DIH é muito importante que esteja sempre na agenda nacional pois nós temos obrigações internacionais para cumprir nesses tratados, desdobramentos de missões de paz no exterior, e nós fazemos parte do Tribunal Penal Internacional, onde os crimes de guerra estão lá previstos”, completa a promotora Najla Nassif Palma.
Para ela, “o maior desafio do DIH é a sua implementação pelos próprios Estados. Como a comunidade internacional pode fazer mais e melhor para que essas regras e compromissos que os Estados têm. Nós temos comandos normativos, basta respeitar e fazer respeitar, divulgar e difundir desde os tempos de paz, para prevenir”.