Vovó reclama de tudo e mais um pouco
Aos 92 anos, ela não passa um dia sem se queixar. Nada está bom. Mas tem uma coisa que a deixa feliz. (Crônica de Nelson Albuquerque Jr.)
- Data: 24/01/2020 17:01
- Alterado: 24/01/2020 17:01
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Nelson Albuquerque Jr.
Crédito:
Reclama quando está chovendo. Reclama quando faz sol. Reclama do leite que está quente, do bolo doce demais, da dor nas pernas, no braço, na barriga, na cabeça, nas costas. Reclama que o som da tevê está baixo. Nem pede para aumentar, é só mesmo pra reclamar que não dá pra ouvir.
Aos 92 anos, a vovó anda incapaz de ver o lado bom da vida. É tanta queixa que sua goiaba sempre tem bigato – e tem mesmo. Seu arroz queima, seu caqui garra na boca, seu café amarga. Tudo é amargo. E a gente pensa: como pode acontecer tudo de ruim pra uma pessoa só?
Será que existe alguma coisa para deixar a vó feliz? Existe, remédio.
Estava lá ela com um raro sorriso na dentadura e com brilho nos olhinhos para exibir pela décima vez a receita com indicação de duas caixas de Losartana. “Só tomo uma caixa por mês, mas o médico deu duas”, dizia feliz. E não foi nada “dado” pelo doutor. Ela tinha acabado de passar no caixa e pagar pelas caixas. Era apenas sua honesta e sincera alegria por ter o dobro de remédio.
A vó também se divertiu com o vendedor na frente da farmácia, dessas de hipermercado. O rapaz gritava na porta, ao lado de uma mesa cheia de medicamentos e cartazes de promoção, anunciando como se vendesse cocada. Baratinho, baratinho. Encostou a mão com cuidado na cervical da vovó e ofereceu: “Vamos levar um comprimido pra essa dor aqui?” Ela riu como se brincasse na entrada do circo.
Mas quem se divertiu no caixa fui eu. A atendente pegou a receita, colocou numa máquina para digitalizar o papel e teve a gentileza de explicar para a vó.
– Aguarde um minuto, está escaneando a receita.
– Ã?!
– Está escaneando a receita.
Vovó ficou paralisada. Sem entender nada. Soltou apenas um “tá” bem baixinho, olhando vidrada para a moça. E eu imaginando seu pavor de ser pega no pente-fino e perder o seu dobro de Losartana.