Um ano após tragédia em São Sebastião, ações de governos atrasam e não eliminam riscos
Na madrugada de 19 de fevereiro de 2023, mais de 600 milímetros de chuva desabaram sobre a cidade.
- Data: 17/02/2024 09:02
- Alterado: 17/02/2024 09:02
- Autor: Redação
- Fonte: FOLHAPRESS/Clayton Castelani e Rubens Cavallari
Crédito:Defesa Civil de SP
A água calma e clara na desembocadura do rio estreito que dá nome à Barra do Sahy em nada lembra o mar tingido de lama pelos deslizamentos provocados pela tempestade que há um ano caiu sobre a costa sul de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo.
Mas a sensação de normalidade é desfeita pelos relatos de depressão, empobrecimento, medo e desconfiança feitos pelos moradores, muitos ainda em áreas de alto risco, que conversaram com a Folha na semana que antecedeu o Carnaval deste ano.
Apesar de bilionária, a resposta do poder público à crise acumula atrasos, recuos e desacertos quanto a oferta de moradia, desocupação de locais sujeitos aos efeitos de eventos climáticos extremos e conclusão de obras preventivas.
Na madrugada de 19 de fevereiro de 2023, mais de 600 milímetros de chuva desabaram sobre a cidade. O maior volume já registrado em uma única precipitação no país dissolveu encostas na Serra do Mar que caíram sobre estradas e casas, deixando 64 mortos na cidade. Horas antes, uma mulher havia morrido durante o temporal em Ubatuba, município litorâneo mais ao norte.
No dia seguinte, reuniram-se no centro de São Sebastião o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governador Tarcísio de Freitas (Republicados) e o prefeito Felipe Augusto (PSDB) para prometer recursos para obras emergenciais e soluções para a ocupação irregular das áreas de risco na cidade.
A ação mais rápida apareceu no desbloqueio e na reconstrução de estradas. Desmoronamentos haviam interditado a rodovia Rio-Santos, isolando áreas com mais vítimas. Helicópteros militares e civis eram o único meio seguro de levar ajuda.
O socorro por barco era desaconselhado pela Guarda Costeira devido ao mar virado, ordem ignorada por barqueiros particulares que abasteciam comunidades afetadas com mantimentos e medicação logo após o temporal.
Foi com a ajuda de donos de pequenas embarcações que, na ocasião, a Folha conseguiu chegar à Vila Sahy, o bairro no sopé da serra ocupado majoritariamente por trabalhadores que prestam serviço em pousadas, restaurantes e casas de veraneio mais próximas ao mar. Morreram no local 52 pessoas. Também ocorreram óbitos em Juquehy (10), Baleia Verde (1) e Maresias (1), segundo a Prefeitura de São Sebastião.
É no ponto crítico da tragédia que ficam evidentes os obstáculos para a conclusão de obras estruturantes que podem preparar uma cidade para eventos climáticos extremos. Liderada pela gestão Tarcísio, a transferência de moradores para 704 unidades em dois conjuntos habitacionais nos bairros Baleia Verde e Maresias é, ao mesmo tempo, uma das mais avançadas ações de enfrentamento ao problema e também o mais visível exemplo de dificuldade na gestão da crise.
O atraso de seis meses para a conclusão dos dois conjuntos da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) -o de Baleia Verde será inaugurado nesta segunda (19)-, porém, nem é o problema central. Obras desse porte levam até 36 meses, diz o governo. A questão é que muitos dos residentes da Vila Sahy não foram convencidos a trocar seus imóveis pelos apartamentos e permanecem na encosta. Querem ter prejuízos indenizados após anos pagando impostos para viver ali.
Renato de Jesus, 54, conta que durante duas décadas gastou quase todo o seu salário de vigilante para concluir a casa de quase 200 metros quadrados com planta devidamente registrada na prefeitura, segundo ele. O imóvel subdividido em quatro rendia R$ 4.000 por mês em aluguéis.
Os inquilinos foram embora. A luz cortada há um ano não foi religada, e a energia agora vem de uma ligação clandestina, intermitente. Mas o IPTU deste ano, no valor de R$ 1.500, já chegou, diz. “Agora que eu poderia trabalhar um pouco menos, aconteceu isso. Era para ser minha aposentadoria.”
A gestão de Felipe Augusto alega que o IPTU é gerado no momento em que o morador faz o registro técnico do imóvel na prefeitura e que a energia somente agora poderá ser religada, com a desistência do governo do estado de uma ação judicial que pedia autorização para a demolir quase 900 casas no bairro.
A análise técnica para um projeto de urbanização da Vila Sahy -que custou R$ 4,1 milhões, sendo R$ 2,8 milhões pagos com recursos arrecadados em nome das vítimas pela ONG Gerando Falcões e R$ 1,3 milhão pelo estado- frustrou a comunidade ao apontar que quase 80% das residências do bairro teriam de ser destruídas.
Foi com base nesse estudo que a gestão Tarcísio tentou levar o projeto adiante, com a ação judicial, mas recuou diante da resistência dos moradores, apoiados pela Defensoria Pública do Estado.
No final do ano passado, quando anunciou a retirada da ação, o governo também desistiu de cobrar pelas novas moradias de quem, comprovadamente, foi vítima de deslizamento ou alagamento. Até então, a gestão Tarcísio insistia em aplicar a regra da CDHU que requeria o pagamento mensal de parcela equivalente a 20% da renda familiar.
Se tomada mais cedo, essa decisão poderia ter aumentado a adesão ao programa habitacional, afirma Evanildes Alves dos Santos Andrade, 57, presidente da Amovila, a associação de moradores do bairro. “Quando a CDHU avisou que cobraria pelas moradias, isso gerou revolta”, conta. “Sabemos que o risco existe, mas é preciso ouvir as pessoas”, diz.
O perigo naquela encosta é conhecido pelas autoridades –ou deveria ser. O mapeamento produzido para as discussões do Plano Diretor de São Sebastião, que é do início dos anos 2000 e foi revisado recentemente, aponta o trecho que desmoronou na Vila Sahy com níveis 4 e 5 para deslizamentos, os mais elevados da escala. Mas o problema se espalha pelo município.
Ao sobrepor o mapa do zoneamento da cidade com o de áreas de risco, é possível identificar cerca de 25 grandes territórios com algum grau de perigo para alagamento ou desmoronamento demarcados como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), o que indica que essas regiões provavelmente estão ocupadas.
Pesquisador do impacto das mudanças climáticas da USP, o engenheiro civil Ivan Maglio coordenou os estudos do Plano Diretor do município. O projeto identificou áreas para a construção de ao menos 17 mil moradias, o suficiente para atender as cerca de 7.000 famílias que convivem com o risco, mas ele lamenta que somente após a tragédia algumas obras pontuais tenham sido iniciadas. “As ações que estão em curso são necessárias, mas estão tratando o risco onde ele já se concretizou”, diz.
Recentemente, a Prefeitura de São Sebastião começou a construir barreiras de contenção próximas a encostas que desmoronaram na Vila Sahy e iniciou escavações de grandes áreas para a instalação de tubos de drenagem com raio de 1,5 metro que levarão ao rio Sahy a água que costuma ficar represada na margem da Rio-Santos oposta à praia e perto dos morros, onde mora a população mais pobre.
Além da Vila Sahy, a obra vai atender o bairro vizinho Baleia Verde, onde está um dos conjuntos habitacionais construídos emergencialmente pela CDHU.
A drenagem é apoiada por moradores dos bairros beneficiados, segundo Aleandre Vieira da Silva, 44, líder comunitário da Baleia Verde. Mas também traz desconfiança para quem vive mais perto da praia.
Segundo o ICC (Instituto Conservação Costeira), organização ambiental local, a prefeitura não apresentou relatórios de impactos que a obra trará ao meio ambiente e, por isso, avalia ingressar na Justiça para embargar o projeto.
“Se este for o único jeito de evitar enchentes, não somos contrários, mas queremos conhecer o impacto”, diz Bettina Grajcer, conselheira do ICC.
O rio Sahy é um curso d’água raso envolto por uma APA (Área de Preservação Ambiental) que possui casas de veraneio nas suas extremidades.
Com as obras de drenagem, o canal terá de ser dragado e aprofundado. Não é só a alteração da paisagem que incomoda moradores da Barra do Sahy e do canto ao fundo da praia da Baleia, onde o início das obras já vem produzindo alguns alagamentos. Eles desconfiam também que um dos objetivos seja tornar o rio navegável, o que permitiria a construção de marinas para atender condomínios de alto padrão em construção ou em projeto.
A gestão do prefeito Felipe Augusto não respondeu sobre as marinas, mas explicou que antes do evento climático o rio tinha cerca de 1 metro de profundidade e era navegável para embarcações pequenas. Com a catástrofe, passou a ter cerca de 30 centímetros. “O desassoreamento prevê a retomada de sua profundidade real”, diz.
A prefeitura ainda alega que a demora para o início das obras de drenagem e contenção de encostas ocorreu devido à necessidade de conclusão de estudos e projetos.
Já gestão Tarcísio de Freitas afirma ter investido mais de R$ 1 bilhão em ações no litoral norte, considerando obras, moradias, linhas de crédito e medidas para recuperação da economia, além de ter encaminhado mais de 480 toneladas de donativos para famílias vulneráveis e desabrigadas.
Também procurado para detalhar as ações do governo Lula no litoral norte, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional não havia respondido até a publicação deste texto.