Triângulo
A fina distância entre escrever e viver a própria estória, neste conto de Nelson Albuquerque Jr.
- Data: 28/02/2020 15:02
- Alterado: 28/02/2020 15:02
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Nelson Albuquerque Jr.
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Aquele instante é eterno. O exato momento em que a porta da clínica se abriu à minha frente. Eu pronto para pisar na rua e colher um pouco mais de liberdade. De cara com a saída. E a porta se abre sem que eu precisasse nela tocar.
Não entrou vento nem luz, apenas uma pequena porção de graciosidade. Seria falso de minha parte dizer que ela era linda. Mas, para mim, era a beleza mais perfeita. Pernas esguias, tronco magro, ombros empinados e uma pálida pele no rosto. Tudo empilhado de forma encantadora. E um ar meio aristocrático.
Ela sorriu com leve surpresa. Os olhos eram duas grandes ameixas acastanhadas. Bem escuros, assim como os cabelos de um castanho forte. Ela sorriu e passou por mim, entrou na clínica, imaginei que para visitar alguém. Dei outro passo e estava fora, abatido por um ar liso que escorria livre pra dentro dos meus pulmões. Eu estava acompanhado por parentes, mas aquele instante diante da menina branca me pôs sozinho no mundo. Não sei de onde vinha a sensação de liberdade – da rua ou da menina.
*
Depois de quase quatro horas para conseguir ordenar essas poucas palavras no papel, Michel se deitou e dormiu. Escrever era botar sua cara pra fora do quarto. Era transpassar a janela gradeada. A caneta na mão era como se fosse suas pernas percorrendo o mundo. Suas viagens eram deliciosas, ele sentia. E havia pouco sofrimento, quase nada, só a medida suficiente para se entender como viver é bom demais pra se perder tempo com tolices.
Acordou excitado. Como se tivesse acabado de deixar escapar de suas mãos a linda menina branca da sua história. Acordou estranhamente feliz, com a cabeça fervilhante em situações para sua querida Marina – agora ela já tinha nome.
Qualquer um afirmaria que estava apaixonado. Michel não gosta de falar dele próprio, por isso pouco se sabe dele. Quase não sai do quarto. Sabe-se que ele parou de fumar e, agora, come muita bananinha para esquecer o cigarro. É um bom ouvidor, sorri e concorda, raramente se expõe. Mas qualquer um afirmaria que ele estava apaixonado.
*
Não sei se atraio as coisas com meus pensamentos fortuitos ou se pressinto algo que está para acontecer. Só sei que estava no balcão de uma lanchonete, esperando meu suco, quando me ferveu a vontade de rever a menina branca.
Meu suco chegou e, na porta do outro lado, ela entrou. Perguntou algo para o rapaz do caixa, que balançou a cabeça negativamente e apontou para o lado da lanchonete onde eu estava. Ela veio na minha direção e eu tremi. Óbvio que não lembraria de mim. Que seja!
– Um suco? – perguntei, empunhando o copo na direção dela. Surpreendida, ela puxou o ar graciosamente.
– Não, obrigada! – respondeu e continuou a esticar o pescoço e girar a cabeça à procura de alguém.
– Quem me dera – falei baixinho.
– Oi?
– Nada… nada. Procurando alguém?
– Meu namorado.
Se fosse possível ouvir, o som seria de todos os meus órgãos internos serem implodidos, abrindo um vácuo em meu peito. Ela deu mais um sorriso, sussurrou um “obrigada” e seguiu em sua busca.
*
Não era raro Michel colocar-se em situações complicadas. Agora, ele e seu personagem estavam apaixonados pela mesma menina, uma mesma Marina, de tantas que existem nesses mundos real e fictício.
O pior era a menina ter namorado. Ou não seria problema? Bastava matar o inconveniente. Mas isso abriria espaço para seu rival. E Michel estava apaixonado. De certa forma, ele não queria trair a confiança de seu personagem. Por outro lado, pensava que se não pudesse tê-la, seu herói também não a teria.
*
Depois de algumas semanas de silêncio e reclusão, resolvi sair, talvez com a esperança de novamente encontrá-la casualmente por aí. E passaram-se mais algumas semanas. Nada. Ela desaparecera do mapa. Cheguei a achar que Deus me abandonara. Mas não.
Eu estava perto da clínica, onde nos vimos pela primeira vez. Ela vinha pelo meio da rua. Carregava duas mochilas pesadas. Tinha a cara cansada de quem retornava de viagem. Me aproximei e ofereci ajuda.
Ela aceitou e disse que morava ali perto, que eu poderia levá-la até em casa. Quase não conversamos no caminho, era uma noite quente. Chegamos ao seu portão, e ela me convidou para tomar um copo de água. Entramos.
*
Michel largou o lápis e saiu para comer umas bananinhas. Já era início de uma madrugada abafada. Sufocante.
Voltou para o quarto, caía de sono, pegou o lápis, não queria deixar os dois sozinhos na casa dela, seus olhos ardiam, de calor e de sono, espremeu o lápis, as letras não saíam, nem pingavam, deitou a testa no papel, bufou, levantou-se, andou pelo quarto, pegou o lápis, escreveu a palavra “Assim”, travou novamente, sentou-se, apagou a palavra, apertou o lápis, comprimiu a mandíbula, reescreveu a palavra, tirou a roupa, ficou nu, apagou a luz, foi se deitar. Estava com muito sono e calor. Rolou no colchão sem conseguir dormir, abraçou uma almofada.
Atracou-se a ela. Mordia-a e beijava-a enquanto se esfregava por toda a cama. Sentia suas mãos a percorrer todo seu corpo nu. No escuro, tudo escuro. Gostava das unhas rasgando as costas. Gemidos loucos e incessantes. Subia sobre ela, rolava, a via por trás, por cima. Numa louca luta de tesão. Até o fim. Até o fim.
Michel extenuado, com o lápis suado na mão, se arrastou até a folha de papel. Sorria delirante. Viu a última palavra escrita. Empunhou o lápis para continuar. Ofegou e o largou. Olhou para o papel e disse: “Ficamos assim”.