Tragédia de Mariana faz 8 anos com reparação parcial, expansão da mineração e cidades fantasmas
Enquanto as famílias de Mariana ainda lutam por reparação justa, a área ocupada pela mineração avança pelo estado e continua gerando impactos diretos para a população.
- Data: 05/11/2023 09:11
- Alterado: 05/11/2023 09:11
- Autor: Paulo Saldaña e Pedro Ladeira
- Fonte: FOLHAPRESS
Crédito:Márcio Fernandes/Estadão Conteúdo
Oito anos após o mar de lama da Samarco engolir o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), parte de Ouro Preto (MG) está esvaziada sob alertas de um novo rompimento de barragem de mineração.
A 1h30 dali, no município de Barão de Cocais (MG), uma igreja do século 18 e todas as casas da comunidade de Socorro compõem a paisagem do que é hoje uma cidade fantasma. Todos se mudaram após sirenes tocarem em 2019 e anunciarem o risco de outra tragédia.
Enquanto as famílias de Mariana ainda lutam por reparação justa, a área ocupada pela mineração avança pelo estado e continua gerando impactos diretos para a população.
A expansão, corroborada por imagens de satélite, é denunciada por moradores. “Perdemos o espaço onde fomos nascidos e criados, a memória. Tudo”, diz o aposentado Marcos Muniz, 59, antigo morador de Bento Rodrigues.
O local foi o primeiro a ser atingido, em 5 de novembro de 2015, pelos 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração da Samarco –empresa formada por uma sociedade entre as gigantes Vale e BHP Billiton.
A barragem de Fundão se rompeu. Dezenove pessoas morreram, sendo que uma estava grávida. Rejeitos em forma de lama percorreram a bacia do rio Doce e chegaram ao mar no Espírito Santo.
Em Bento Rodrigues e na vizinha Paracatu, por exemplo, a lama cobriu tudo. Casas, animais, lembranças e os modos de vida históricos das famílias.
Desde então a tentativa de reverter esse apagamento compõe as demandas por uma reparação integral. Além de várias ações na Justiça brasileira, um processo corre na Inglaterra, país de origem da BHP.
Símbolo de uma das maiores tragédias ambientais do mundo, o rompimento em Mariana não ficou como exemplo único no país. Outra barragem da Vale, em Brumadinho (MG), estourou em janeiro de 2019 matando 270 pessoas, sendo duas grávidas.
Não houve punições criminais em nenhum dos casos.
Com as repetições, as mineradoras foram pressionadas por mais segurança. Remoções foram aceleradas no entorno de reservatórios.
Em fevereiro de 2019, os moradores de Socorro acordaram de madrugada com uma sirene. Havia o risco de deslizamento da barragem Sul Superior, também da Vale. Cerca de 400 pessoas saíram às pressas. E não puderam mais voltar.
A antiga moradora Élida Couto, 36, e outros ex-vizinhos guiaram a equipe da Folha pela cidade fantasma que se tornou Socorro. O mato tomou conta das construções, e saqueadores levaram muito do que ficou.
Até hoje Élida paga a conta de luz da casa vazia para manter comprovação de propriedade. Ela quer voltar. Frequentemente vai até lá cuidar da Igreja Nossa Senhora Mãe Augusta do Socorro, de estilo rococó, tombada pelo patrimônio em 2006.
Élida também mostrou novas operações de mineração próximas. Os atingidos denunciam esse avanço, enquanto o risco de deslizamento é mantido e o retorno ao povoado, proibido.
“Sempre quiseram puxar a mineração pra cá”, diz. “Aproveitaram a questão de Mariana e Brumadinho para tirar a gente e ter livre acesso.”
Em nota, a Vale afirma que a barragem está em processo de descaracterização, com fim previsto para 2029. Só depois disso é que as famílias poderiam voltar.
A companhia ressalta que um acordo judicial de reparação prevê R$ 527 milhões para Barão de Cocais, em programas de transferência de renda e fortalecimento de serviços públicos. Segundo a empresa, R$ 90 milhões já foram pagos.
A Vale afirma que não houve expansão das cavas em operação em Barão de Cocais, Ouro Preto (onde fica o distrito de Antônio Pereira, esvaziado pelo risco de um novo rompimento) e Mariana. A plataforma MapBiomas, que analisa imagens de satélite, indica, por sua vez, expansão das áreas de mineração até 2022, os dados mais recentes.
Organizações de atingidos cunharam o termo “terrorismo de barragem” para abarcar a atuação das empresas. O risco seria usado como pressão para remoções, facilitando as ações de mineração. A dependência econômica da região com a mineração colabora.
São as empresas que classificam os riscos das barragens, ressalta o ambientalista Ronald Guerra.
“Quem diminui ou aumenta o risco é a própria empresa. Uma autodeclaração de uma empresa que a gente não tem confiança é algo muito frágil”, diz ele, um dos líderes do Instituto Guaicuy.
As prefeituras de Mariana, Ouro Preto e Barão de Cocais foram procuradas pela reportagem, mas não responderam até a publicação deste texto.
As empresas realizam estudos para traçar as manchas de inundação na hipótese de rompimento. A Vale afirma que utiliza “tecnologia de ponta para fazer uma avaliação criteriosa”.
Dados divulgados pelo site Repórter Brasil mostram que as manchas de inundação associadas a barragens em risco somam 2.050 km² em 178 cidades do país. A maior parte, em Minas Gerais.
Ronald Guerra falou com a Folha em frente à barragem de Doutor, outra estrutura da Vale, em Antônio Pereira. “Os estudos são meio mutantes, mudam de acordo com o interesse da mineradora. Essa mancha já teve vários desenhos.”
Em 2020, a Vale retirou parte das famílias de Antônio Pereira e da vizinha Vila Samarco com base nessas análises. O Guaicuy faz o trabalho de assessoria técnica independente para os atingidos do Pereira. Esse trabalho também é realizado em Mariana pela Cáritas.
“Um aparelhinho mediu, na esquina do meu muro com o vizinho, que foi retirado. O aparelhinho não apitou na minha casa e falaram ‘a lama não vem até aqui'”, conta Gislene Faria, 41, moradora de Antônio Pereira. “Que lama é essa que tem vida própria? Tira meu vizinho do fundo, da esquerda, da frente, e a lama não pega na minha casa.”
Hoje, ela, o filho e o marido vivem em meio a casas abandonadas, sem telhados e vandalizadas.” Fiquei abandonada na rua.”
No local também há novas ocupações para gestão de rejeitos, com movimentação de caminhões, causando prejuízos a moradias e a acesso a cachoeiras.
58 atingidos de Bento Rodrigues morreram nesses 8 anos
O desaparecimento de comunidades inteiras, sem garantia de atendimento a direitos, e a sensação de impotência são vistos como repetição do que acontece com os atingidos da tragédia de Mariana. São oito anos de uma relação de pouca transparência e prazos indefinidos, de acordo com lideranças.
“É como se a gente tivesse congelado a vida em 2015”, diz o mecânico Mauro Marcos da Silva, 54. Ele diz que gostaria de voltar a Bento de origem.
Ao contrário da vida de Mauro, a mineração não ficou congelada. A Samarco voltou a operar em Mariana no fim de 2020, na pandemia.
A empresa diz que opera com 30% da capacidade e não utiliza barragens. É possível ver, do antigo Bento, movimentações de caminhões que antes da tragédia não apareciam.
Segundo a Fundação Renova, criada para gerir a reparação, R$ 32,7 bilhões foram destinados a ações de reparação e compensação, atingindo 431,2 mil pessoas.
Os novos reassentamentos, de Bento Rodrigues e Paracatu, tiveram suas primeiras casas entregues neste ano. Dos 341 imóveis previstos nos dois locais, 234 estão com obras finalizadas. Alguns equipamentos, como a escola de Bento, já funcionam.
Lideranças no embate com a Renova não tiveram as casas iniciadas e falam em retaliação. A fundação afirma que cada obra depende de trâmites legais e anuência do atingido.
A característica desses novos conglomerados é de difícil compatibilidade com a ideia de reparação dos modos de vida, dizem os atingidos. Bento Rodrigues era rural, plana, com casas abastecidas de água bruta e espaços para a criação de animais e plantações.
O novo Bento está em terreno montanhoso. O cenário é de empreendimento imobiliário, urbano, com arquitetura padronizada, similar a condomínios.
“Estão fazendo um reassentamento para mostrar para o mundo que entregaram casas melhores do que a gente tinha”, diz Monica dos Santos, 38, que nasceu e vivia em Bento. “Mas está sempre faltando pedaços, sempre vai faltar.”
A fundação diz que seguiu a vontade dos antigos moradores.
“As famílias escolheram. Foram colocados à disposição alguns projetos, e elas foram definindo”, diz Marcio Pedroso, um dos gerentes da Renova. “Mesmo diferente [do que era], as famílias estão se apropriando.”
Muniz, antigo morador, duvida dessa apropriação. “Nosso vínculo, nossa história, está lá”, diz. “Quando eu morrer, quero ser sepultado em Bento Rodrigues.
O cemitério não foi levado pela lama, bem como a igreja contígua. Não há definição do que será feito das ruínas de Bento, parte submersa por água por causa de um dique.