Medida que pode ampliar BPC abre divergência entre ministérios
Relatório propõe mudanças em avaliação de pessoas com deficiência, mas não apresenta cálculo de impacto nas despesas
- Data: 15/07/2024 09:07
- Alterado: 15/07/2024 09:07
- Autor: Redação
- Fonte: Idiana Tomazelli e Marianna Holanda/Folhapress
Crédito:Reprodução
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discute uma proposta que pode flexibilizar critérios de avaliação da pessoa com deficiência e, com isso, turbinar a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada), uma das despesas que estão na mira da equipe econômica justamente pelo crescimento acelerado nos últimos meses.
A iniciativa foi concebida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e abriu divergência com outros órgãos do governo, sobretudo os ministérios que trabalham na revisão de gastos.
A Folha teve acesso ao relatório do grupo de trabalho sobre a mudança na avaliação, que servirá de base para uma minuta de decreto, que ainda não chegou formalmente à Casa Civil.
A medida prevê a criação do Sistema Nacional de Avaliação Unificada da Deficiência, um novo modelo para certificar cidadãos como pessoas com deficiência. A classificação abre caminho para o reconhecimento de direitos, como isenções no IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) e acesso ao BPC para aqueles de menor renda.
Integrantes do governo veem dificuldades para avançar em uma medida que possa ter impacto negativo nas contas públicas no momento em que o governo é pressionado a reduzir gastos.
No início do mês, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) anunciou para 2025 um corte de R$ 25,9 bilhões em despesas com benefícios sociais, que passarão por um pente-fino – inclusive o BPC.
Auxiliares palacianos dizem ainda não ser possível fechar posição sobre o texto proposto pelo Ministério de Direitos Humanos porque não foram apresentadas estimativas de impacto.
Uma ala do governo defende que os novos critérios sejam usados apenas para outras políticas voltadas a pessoas com deficiência, menos o BPC. Um técnico ouvido pela reportagem diz ser necessário atualizar a avaliação do benefício, mas a iniciativa precisa vir acompanhada de correções de problemas do BPC.
Uma das propostas que constam do relatório prevê que a nova avaliação “seja conduzida inicialmente por equipes multiprofissionais da Previdência Social e da saúde, selecionadas por sua capilaridade, interiorização e abrangência em termos quantitativos de profissionais em todo o território nacional”.
Hoje, apenas peritos da Previdência avaliam pessoas com deficiência que solicitam o BPC. Para técnicos do governo críticos à proposta, permitir que a avaliação fique a cargo de agentes de saúde nos municípios pode ampliar a discricionariedade do processo e elevar as concessões.
O documento diz ainda que o novo modelo biopsicossocial de avaliação considera aspectos não só físicos e psicológicos, mas também sociais e ambientais.
O chamado IFBrM (Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado) mede a capacidade potencial de a pessoa realizar atividades e as barreiras enfrentadas, segundo uma lista de fatores: produtos e tecnologias, condições de habitação e mudanças ambientais, apoio e relacionamentos, atitudes de pessoas externas (como preconceito, discriminação ou capacitismo) e acesso a serviços e políticas públicas.
Os cidadãos reconhecidos pelo instrumento receberiam o Certificado Nacional da Pessoa com Deficiência.
Técnicos alertam que o alargamento dos critérios pode resultar na equiparação de quaisquer doenças crônicas a deficiência, ou desconsiderar a progressão de crianças que nascem com alguma deficiência, mas conseguem transpor dificuldades ao longo da vida.
Embora o relatório diga que a mudança não interfere nas regras dos programas, facilitar o reconhecimento do direito pode impulsionar as concessões do BPC, que tem hoje quase 6 milhões de beneficiários – 3,2 milhões deles de pessoas com deficiência. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano.
O grupo de trabalho contou com representantes dos ministérios dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento e Assistência Social, da Gestão, do Planejamento, da Fazenda, da Previdência e da Saúde, além da Casa Civil e do Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência). A discussão durou um ano, mas as preocupações fiscais ficaram mais evidentes na reta final dos trabalhos.
O MDH defendeu o novo modelo de avaliação e disse que a mudança está em análise. “A partir de agora, com esse diagnóstico feito por um conjunto de ministérios, haverá estudo sobre os possíveis impactos financeiros – ou até mesmo economia de recursos advinda da avaliação unificada”, afirmou em nota.
A pasta disse ainda que a adoção do formato pode levar à maior racionalidade no uso de recursos. “Pode-se, com a avaliação biopsicossocial da deficiência, apontar quais tipos de serviços de reabilitação aquele indivíduo necessita para ser mais autônomo, pode-se definir quem poderá disputar vagas de emprego pela cota de pessoa com deficiência, ou até mesmo quem tem direito ao passe livre.”
Já o MDS disse que a avaliação unificada “possui metodologia aprimorada” em comparação à utilizada hoje para a concessão do BPC. Segundo a pasta, a proposta leva em consideração “elementos fundamentais para ampliar o acesso das pessoas com deficiência a direitos”.
“A avaliação de impacto será possível após a instituição do novo modelo e aplicação da avaliação”, afirmou.
O Planejamento informou que o decreto ainda não foi apresentado e que “eventuais impactos financeiros ainda serão discutidos”. A Casa Civil disse que a proposta ainda não está sob análise do ministério. A Fazenda foi procurada em 28 de junho, mas não se manifestou.
BPC TEVE CRESCIMENTO ACELERADO A PARTIR DE 2022
As concessões do BPC tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais. Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil.
Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês. Em abril, a quantidade de pessoas que estão no BPC alcançou 5,9 milhões.
Embora houvesse um represamento de pedidos, devido à fila do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), técnicos do governo veem uma situação de descontrole e buscam explicações para o fenômeno.
Além das concessões, também aumentou o número de novos requerimentos, de 146,6 mil por mês na média de 2023 para 170,9 mil mensais em 2024. O avanço se dá em todas as regiões, mas tem mais força no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Um dos possíveis fatores de impulso foi a mudança feita em 2021 na Loas (Lei Orgânica de Assistência Social), que permitiu deduzir da renda familiar os valores destinados a pagar médicos, fraldas, alimentos especiais ou medicamentos. Em outubro daquele ano, o governo baixou uma portaria definindo um abatimento padrão para cada categoria, simplificando o processo.
O Executivo também simplificou a avaliação social, permitindo a aprovação automática nesse quesito em algumas situações. Ainda assim, o requerente precisa passar pela avaliação de renda e, se for pessoa com deficiência, pela perícia médica.
Há ainda brechas legais, como uma portaria da época da pandemia de Covid-19 que permite a concessão do BPC a pessoas que não estão no Cadastro Único.