Fotografias urbanas – e outros textos
Três pequenas crônicas com aquele clássico olhar sobre o conturbado, agitado e às vezes caótico cotidiano urbano. Textos de Nelson Albuquerque Jr.
- Data: 21/02/2020 12:02
- Alterado: 21/02/2020 12:02
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Nelson Albuquerque Jr.
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FOTOGRAFIAS URBANAS
Cimento. Asfalto. Fumaça. Calor. William corta o trânsito com sua Harley. Moto de raça desperdiçando borracha de pneu em ruas entulhadas de pressas. Buzinaço. Verde. Amarelo. Vermelho. Entre retrovisores e sobre calçadas, William avança como um vira-lata acossado. Rosna sem fazer temer uma pomba sequer . Elas seguem ciscando suas migalhas e restos. Tranquilas. Entra na contramão. Sobe na calçada. Apenas um pequeno trecho. Atalho. Viela. Chega. Saca o capacete. Preto. Suor e sede. Enxuga-se com a mão de poeira cinza.
Na praça ao lado, Cadêncio fuma seu cigarro. Chinelo fresco solto livre. Banco de cimento duro. Rachado. Quente. Sem sombra. Praça baldia. Mato alto. Meio verde. Meio amarelo. Pátria ao meio apenas. Nem o vento nem o tempo aparecem para dizer algo. Tudo parece parado. À espera de qualquer coisa. Como a pomba tranquila. Cadêncio traga e volta a pousar a mão sobre o joelho descarnado. Fumaça sobe lenta. Quase morta. Tanto quanto os sonhos de Cadêncio. Por ali passa Bárbara. Num salto ruidoso e habilidoso. Esquivando-se de pedras e buracos. Calçado brilhoso. Plástico. Cáustico. Bolhento. Empinada e feliz. Carolina desce do ônibus e ajeita a mochila nas costas. Está cedo para sua primeira aula. Anda. Maurílio corre pra não perder o ônibus. Esbofa-se.
William monta sua Harley e segue para outra entrega. São muito pedidos. Desejos. Que não se encaixam. Como peças embaralhadas de quebra-cabeças distintos. Excesso de expectativa. Pessoas morrendo de esperanças. William corre para entregar. E saciar mais alguém.
ONZE MINUTOS
O casal desembaraça os ciúmes. Ele está indo bem. Aqui, bolo e amendoim. Lá, um copo de cerveja pelo meio. Tevê conta a vida de um jogador de futebol. Pano de prato passa pra limpar o balcão. Piada, risos, brincadeiras e trocos. Copo americano. Gente que se conhece. Chama um pingado. Grita por um pão na chapa. Moto rasga o ar. Um segundo de surdez. Mais uma gelada. Café ali. Tevê já fala de um crime. Outra piada, risos. Fila do pão. Potes engordurados de pimenta, mostarda e maionese. Sachês de açúcar. Um abraço de “você por aqui?”. Pra lá passa uma saia. De lá volta uma bengala. Menina saca uma coca da geladeira. Vento estranho. Guardanapos de papel voam. Grudam no chão. O café acaba. Pego a comanda. Levanto-me e já não vejo a hora de voltar nessa padaria.
A VIÚVA
Quem não conhece Marcília? Nem tão velha, anda pra cima e pra baixo sob seu véu preto. Um luto que parece não ter fim. Há muitos anos, desfila sua viuvez pelo mercado, feira, ruas, igreja. Sempre estranhei, porque já vi muitas vezes o carro do marido saindo e entrando em sua casa. Tive de me informar no boteco. E a explicação é simples. O sonho de Marcília, desde criança, sempre foi ser viúva. Uma vez casada, não teve paciência de esperar. Comprou suas vestimentas, entristeceu-se e seguiu sua vida enlutada. Uma feliz e realizada viúva.