Essa fotografia aqui
Revirar o baú de fotos nos traz lembranças que transitam entre o real e o imaginado. Crônica de Nelson Albuquerque Jr.
- Data: 28/11/2019 16:11
- Alterado: 28/11/2019 16:11
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Nelson Albuquerque Jr.
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Se tem um gosto antigo que eu ainda preservo é o de ver fotografia em papel. O bom e velho baú da família. É incrível como a magia do tempo brinca com a nossa memória: o esquecido volta diferente, o que parecia fantasia da cabeça reaparece materializado, e renascem até umas alegrias perdidas ao longo dos anos. Lembranças que nos desafiam entre o real e a invenção.
Revirando o baú achei essa fotografia. Um grupo grande de amigos (ou nem tanto). Na época, as aparências pareciam fazer mais sentido. Hoje, não mais. Difícil saber as verdades e mentiras aqui. Muita coisa eu lembro – acho.
O sorriso desse rapaz, por exemplo, não deveria estar aqui. Disfarça uma dor. Tenho só essa foto dele, o que me faz sempre lembrar dele contando sobre a doença grave recém descoberta na família. Aqui não se vê, mas eu sei que não tem sorriso atrás desse sorriso.
Essa blusa cor de laranja da Isabela era vermelha. Lembro bem: era linda e viva. Vistosa. E não esse esboço de brechó, sem cor, sem graça. E ainda tinha um perfume doce, ela.
Só que acho que nessa hora aqui ninguém sentiu o perfume. Porque alguém, não sei quem até hoje, liberou gases silenciosos. O peido empesteou o ar rapidamente. Não houve comentários, sequer reações. Todos permaneceram firmes na pose até o momento do flash. O cheiro aqui não se vê. Desconfio que tenha sido este senhor. Mas pode ter sido qualquer um. Até Isabela.
E esses dois aqui?! Um do lado do outro. Mãos nos ombros. Parecem bons amigos. Que nada! Queriam se matar. Esse mais velho, da esquerda, temia perder o cargo de chefe pra esse de verde. Trabalhavam no mesmo setor. E ele tinha razão, porque esse queria mesmo puxar o tapete. Nem sei no que deu essa história. Mas aqui, pelo menos, estão sorrindo lado a lado.
Ouvi a porta abrir e, logo, uma voz soprou atrás de mim.
– Ah, essa foto! Você gosta, né?! Que turma boa!
Minha esposa falou, massageando meus ombros, me deixou com as interrogações e saiu. Observei ainda um pouco mais a velha fotografia. Procurando uma só verdade ali. Virei-a. E atrás era só papel. Com a data: 1998. Achei.