“É condenável”, diz Marco Aurélio, ministro do STF, em crítica à omissão do cartório
Segundo integrantes de tribunais superiores, o ato do cartório de Brazlândia, que escondeu informações do N1, pode ser investigado pelo TJ-DF e pelo Conselho Nacional de Justiça
- Data: 07/03/2021 09:03
- Alterado: 07/03/2021 09:03
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Ministro Marco Aurélio
Crédito:Nelson Jr./SCO/STF
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse neste sábado ao Estadão que é “condenável” e “muito ruim em termos de avanço cultural” a atitude do cartório onde o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) registrou a compra de uma casa de R$ 6 milhões em Brasília. Conforme revelou o Estadão, o cartório escondeu informações da escritura pública do imóvel, documento com os dados do negócio que deveria ser acessível a qualquer pessoa que o solicitar. O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o País e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro, segundo especialistas consultados pela reportagem.
“É tudo muito ruim em termos de avanço cultural. A boa política pagou um preço incrível, abandonando a transparência e a publicidade. Algo condenável a todos os títulos”, afirmou Marco Aurélio Mello.
“Vem-nos da Constituição Federal, do artigo 37, que atos administrativos, como no caso o ato do cartório, são públicos, visando ao acompanhamento pelos contribuintes e a busca de fiscalização que deságue na eficiência. É incompreensível a omissão. E por quê? Por que omitir? Há alguma coisa realmente que motiva esse ato, porque nada surge sem uma causa.”
Na cópia da escritura obtida pela reportagem no cartório, foram omitidas informações como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de Flávio e da mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro.
Marco Aurélio Mello questionou a atitude do senador, de optar por um cartório em Brazlândia, região administrativa localizada a 45 km do centro de Brasília. “É estranho que não se tenha feito a escritura num cartório de notas aqui do centro, ou seja, de Brasília propriamente dita”, comentou.
Ministros de tribunais superiores ouvidos reservadamente pela reportagem também condenaram a atitude do cartório. Para os magistrados, a omissão dos dados em uma escritura pública pode caracterizar improbidade administrativa e ser investigada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Integrantes do CNJ consultados pelo Estadão, no entanto, observam que o assunto deve ser levado à Corregedoria competente – no caso, a do próprio TJDFT. Para eles, uma eventual ação do conselho deveria ser excepcional, apenas quando o tribunal competente não agir.
FINANCIAMENTO
Para comprar o imóvel, o filho “01” de Bolsonaro financiou R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB), com parcelas mensais de R$ 18,7 mil. Como revelou a reportagem, as prestações representam 70% do salário líquido de Flávio como senador – R$ 24,7 mil. Outras duas escrituras de imóveis em nome da família Bolsonaro obtidas pela reportagem, mas em cartórios distintos, foram fornecidas sem qualquer tarja. Uma delas do próprio presidente da República.
Na última sexta-feira, o titular do cartório de Brazlândia, Allan Guerra Nunes, disse ao Estadão que tomou a medida para preservar dados pessoais do casal. Nunes é presidente da Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg-DF).
Em um primeiro contato, ele não soube explicar em qual norma embasou sua decisão. Mais tarde, em nota, Nunes afirmou que as informações são protegidas pela Lei 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. A regra, porém, não se aplica a cartórios de notas. “Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando eu fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, disse Nunes.
Segundo Nunes, esta foi a primeira vez que a medida foi tomada. “Foi o primeiro caso. Zero de motivação política, nenhuma, não tenho nenhum interesse político nesse caso.”
Nunes explicou a razão de também ter omitido números de documentos de identificação pessoal. “Se hoje me pedirem cópia de escritura com financiamento bancário eu vou omitir os dados da pessoa”, afirmou o cartorário, que admitiu nunca ter incluído tarja em escrituras públicas antes. “Não há nenhum tratamento privilegiado, de maneira alguma.”
Em nota divulgada neste sábado, o Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil (CNB/CF) informou que o tabelião de Brazlândia “possui independência jurídica e autonomia para o gerenciamento administrativo e financeiro de sua unidade”.
Segundo o conselho, ao omitir as informações da escritura pública, Nunes considerou a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), “que visa a preservar dados sensíveis dos cidadãos, entre eles os sigilos fiscal e bancário, tema que está em estudos e processo de implementação pelos notários e registradores do país”. A lei, no entanto, não foi mencionada pelo próprio tabelião nas duas ocasiões em que conversou com a reportagem na última sexta-feira.
De acordo com a entidade, o caso será enviado pelo próprio tabelião para análise da Vara de Registros Públicos do TJDFT.
Imposto
A casa tem 1,1 mil m², com quatro suítes amplas, academia, piscina e spa com aquecimento solar – e foi vendida em anúncio como “a melhor vista de Brasília da suíte máster”
Nesta semana, Flávio disse que o negócio foi “transparente” e que usou “recursos próprios” e um financiamento para a compra da casa no Lago Sul, bairro nobre de Brasília. O salário bruto de um senador da República é de R$ 33.763,00, que após os descontos cai para R$ 24,9 mil. O valor do novo imóvel é mais que o triplo do total de bens declarados por Flávio Bolsonaro à Justiça Eleitoral em 2018, quando disputou uma vaga no Senado pelo Estado do Rio de Janeiro.
Ao todo, o imóvel perto do lago Paranoá, adquirido pelo filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro custou R$ 5,97 milhões, mas a maior parte, R$ 3,1 milhões, foi financiada pelo Banco de Brasília (BRB). Flávio se comprometeu a pagar o valor em 30 anos. De acordo com a escritura do imóvel, o empréstimo bancário não inclui impostos e taxas.
A escritura pública registra que o senador deu de entrada R$ 2,87 milhões pela residência. No entanto, de acordo com advogados do empresário Juscelino Sarkis, sócio da empresa que vendeu o imóvel a Flávio, o parlamentar realizou depósitos que somam R$ 1,09 milhão até o momento, de forma parcelada: R$ 200 mil em 23 de novembro; R$ 300 mil em 10 de dezembro; e R$ 590 mil em 11 de dezembro.
Esses valores constam de nota divulgada pelos advogados de Juscelino, o que contradiz as informações apresentadas na escritura. Segundo especialistas, como a escritura é um documento que serve como prova, a situação poderia ser enquadrada como falsidade ideológica.
Conforme revelou o Estadão neste sábado, Flávio precisou desembolsar mais R$ 181.111,85, à vista, para quitar impostos e taxas referentes ao negócio.
Só de Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), cuja alíquota no Distrito Federal é hoje de 3% sobre o valor da venda, foram R$ 179,1 mil. Já a escritura do imóvel e o registro totalizaram outros R$ 2.011,95, segundo tabela da associação de cartórios do Distrito Federal.
As condições do financiamento do imóvel de Flávio Bolsonaro no BRB foram bastante vantajosas. Segundo o simulador do banco, um financiamento no valor daquele obtido pelo senador, com o mesmo prazo de pagamento, exigiria uma renda líquida de R$ 46,8 mil. O BRB é uma instituição financeira do governo do Distrito Federal, comandado por Ibaneis Rocha (MDB), aliado da família Bolsonaro.