Dispara nos EUA prisão de brasileiros, que relatam fome, frio e abandono

Número de imigrantes do Brasil detidos na fronteira sul bate recorde e leva governo americano a expulsar ilegais para Ciudad Juárez, uma das cidades mais violentas do México

  • Data: 15/02/2020 10:02
  • Alterado: 15/02/2020 10:02
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Estadão Conteúdo / Colaboraram Beatriz Bulla, Renata Tranches, Fernanda Simas e Felipe Frazão
Dispara nos EUA prisão de brasileiros, que relatam fome, frio e abandono

Crédito:Reprodução

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Na semana passada, 53 brasileiros estavam na Casa do Migrante — centro católico que tem acolhido em Ciudad Juárez, a 4 quilômetros da fronteira com os EUA, quem tentou entrar em território americano. Eles são os primeiros alvos de uma medida adotada em janeiro pela Casa Branca: enviar brasileiros ilegais ao México. Até agora, este procedimento era reservado principalmente a centro-americanos, especialmente hondurenhos, salvadorenhos e guatemaltecos.

Angustiados e confusos, os brasileiros relataram ter sido maltratados na prisão americana, passaram frio, fome e se apertaram em celas superlotadas. O número de brasileiros detidos na fronteira sul dos EUA disparou de 1.504, no ano fiscal de 2018 (de 1.º de outubro de 2017 a 30 de setembro de 2018), para 17.893, no ano fiscal de 2019, quase 12 vezes mais – um recorde.

Os dados mais atuais, referentes aos primeiros meses do ano fiscal de 2020 (outubro, novembro e dezembro de 2019), mostram as prisões ainda em alta: foram 4.469 detenções no trimestre, três vezes mais que em todo o registro de 2018.

A maioria entra por El Paso, no Texas, cidade gêmea de Juárez, do lado mexicano. Segundo dados oficiais, existem hoje 28.316 brasileiros com ordem de deportação nos EUA, dos quais 983 já foram condenados. Há ainda 313 sob custódia do Serviço de Imigração e Alfândegas (ICE, na sigla em inglês) com ordem final de deportação autorizada.

Frio, fome e celas superlotadas são relatos comuns de imigrantes ilegais detidos nos EUA – não apenas brasileiros. No entanto, o governo americano defende a qualidade das prisões. O vice-presidente, Mike Pence, considerou exagerados na imprensa os relatos que comparavam os centros de acolhimento a “campos de concentração”.

Juliana é o nome fictício de uma jovem de Goiânia – a maioria dos brasileiros em Ciudad Juárez pediu para que a identidade não fosse revelada. Ela disse ter viajado 9 mil quilômetros com o filho de 14 anos, fugindo dos abusos de um ex-marido violento. Juliana não confia na polícia goiana. Alega ter sido estuprada aos 13 anos por um policial que lhe desferiu 17 facadas. Ela mostra cicatrizes nos pés, nas mãos e na barriga, uma tão profunda que parece que seu torso foi partido ao meio. “Pensei em voltar (para o Brasil), mas é muito perigoso. Meu ex-marido me ameaçou. Estou desesperada e com medo”, disse.

Entre os brasileiros na Casa do Migrante, uma narrativa é comum: todos se queixaram de maus-tratos na semana que passaram trancafiados na prisão americana. Segundo Juliana, quem mais sofreu foram as crianças. Quando elas faziam barulho nas celas, diz a mulher, os agentes da Patrulha de Fronteira se irritavam e puniam todos, suspendendo a comida.

 “Em celas para cinco pessoas, os agentes enfiavam mais de 20 presos”, diz Valmir Elias, mineiro de Carmo do Paranaíba – único que se identificou. “As crianças foram maltratadas, sofreram uma tortura psicológica que será difícil de apagar da memória. Elas estão traumatizadas. Havia meninos de 7 anos em celas superlotadas.”

Este ano, Juárez teve um inverno glacial. Na semana passada, a neve cobriu as ruas da cidade e a temperatura chegou a -10ºC. Mesmo assim, os brasileiros reclamaram que os americanos mantiveram o ar-condicionado das celas ligado.

Valmir viajou com o filho de 8 anos e diz que ficou quatro noites sem dormir. “Eu me senti um lixo, humilhado. Chorava o tempo todo e me perguntava por que estava naquele lugar, por que meu filho tinha de passar por isso. Ele não tem culpa.”

Apesar da angústia e do medo, a maioria não quer desistir do “sonho americano”. “Eu gostaria de pedir ao presidente (Bolsonaro) que não deixasse que nos tratassem assim. Não somos terroristas, somos trabalhadores. Ele (Bolsonaro) aceitou que nos deportassem para o México”, reclama Valmir.

Francisco – também um nome fictício – vendeu tudo o que tinha para pagar US$ 10 mil para um coiote que o levou com a mulher e a filha de 2 anos até El Paso. Ele diz que a família passou fome na prisão americana. “A comida era pouca e horrível. As celas eram geladas, por isso as crianças chegaram a Juárez doentes”, disse Francisco, também de Carmo do Paranaíba.

Em janeiro, quando o governo americano passou a incluir os brasileiros no grupo de enviados ao México, o Itamaraty se manifestou dizendo que havia sido informado da nova orientação. Também ressaltou que o consulado na Cidade do México não havia recebido pedidos de auxílio e os brasileiros poderiam ficar regularmente no México “pelo tempo estabelecido pela lei mexicana”.

A via crúcis dos brasileiros começou quando o governo americano ampliou o Protocolo de Proteção a Migrantes (MPP, na sigla em inglês), programa adotado pelo presidente Donald Trump. O MPP estabelece que os imigrantes devem permanecer no México enquanto tramitam seus pedidos de asilo nos EUA – antes, eles aguardavam julgamento em território americano.

A medida faz parte do esforço do governo para diminuir o número de solicitações de asilo, no momento em que Trump disputa a reeleição e precisa mostrar resultados concretos no combate à imigração ilegal, sua grande bandeira de campanha.

O México, no entanto, não concordou em receber africanos, indianos ou asiáticos – apenas latino-americanos. A grande maioria vem de Guatemala, El Salvador e Honduras. Há duas semanas, quando anunciou a inclusão dos brasileiros no MPP, o secretário de Segurança Interna, Ken Cuccinelli, comemorou a decisão. “Incluir brasileiros (no programa) é um grande feito”, escreveu o secretário no Twitter.

BRASIL. No Itamaraty, o assunto é tratado como “tabu”. Nos bastidores, diplomatas brasileiros dizem que estão em contato com autoridades mexicanas e americanas e garantem que houve mobilização interna para dar algum tipo de assistência consular aos brasileiros.

A diretriz do governo brasileiro, expressa na semana passada pelo chanceler Ernesto Araújo, é “não questionar as ações dos EUA”. Na semana passada, em Washington, ele evitou reclamar do tratamento dado aos brasileiros em encontro com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo.

A interpretação de diplomatas ouvidos pela reportagem é a de que a passividade do chanceler reflete as críticas de Bolsonaro e de seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), aos imigrantes ilegais. Em março de 2018, o deputado afirmou que os brasileiros ilegais no exterior eram uma “vergonha”.

Nem todos concordam. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, uma das vozes mais críticas à política externa brasileira, defende uma ação mais enérgica do governo. “Cada país tem sua legislação, mas não precisamos colaborar com essa política”, disse. Em Brasília, outros diplomatas admitiram reservadamente constrangimento com a cooperação, mas evitaram se pronunciar por medo de retaliação nas promoções do ministério.

Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil em Washington, também critica o alinhamento de Bolsonaro. “Hoje, o único país que nos aplica e ameaça com sanções são os EUA”, afirmou. “É um padrão de comportamento até de menosprezo. Se imaginaria que um país que fez tantas genuflexões aos EUA, como o Brasil, pelo menos seria tratado com um pouco menos de dureza. Mas eles nem se dão o trabalho de fazer isso.”

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  • Data: 15/02/2020 10:02
  • Alterado:15/02/2020 10:02
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Estadão Conteúdo / Colaboraram Beatriz Bulla, Renata Tranches, Fernanda Simas e Felipe Frazão









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