Desde Tonho da Lua, novelas mudaram a forma de abordar condições mentais
Personagem de 'Mulheres de Areia' ajudou a contestar estigma na década de 1990
- Data: 06/08/2023 12:08
- Alterado: 06/08/2023 12:08
- Autor: Redação
- Fonte: Lívia Inácio/Folhapress
Tonho da Lua (Marcos Frota) em 'Mulheres de Areia' (1993)
Crédito:Divulgação/Viva
“Você é o Tonho da Lua?”. Trinta anos depois de ter atuado em “Mulheres de Areia”, o ator Marcos Frota, 66, ainda é reconhecido pelo personagem que interpretou na época. O carismático jovem com deficiência intelectual que esculpia estátuas na praia se tornou um ícone da teledramaturgia nacional e abriu caminho para contestar a figura do louco quando a reforma psiquiátrica tomava forma no Brasil.
Reprisada desde junho pela Globo, a novela foi um remake da versão produzida pela TV Tupi em 1973. Ambas as edições foram assinadas por Ivani Ribeiro. Só que, enquanto na primeira o escultor “se cura” da deficiência, na segunda descobre que não precisa ser curado, mas incluído na sociedade como é.
A abordagem ia ao encontro de debates que eclodiram no país entre os anos 1980 e 2000. Paulo Amarante, professor da Fiocruz e pioneiro desse movimento, lembra que o período foi marcado por avanços como a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), no fim dos anos 1980, e o aumento da resistência à estigmatização da loucura e ao confinamento em massa de populações marginalizadas.
Na época em que a novela foi produzida, manicômios começavam a ser fechados enquanto embriões do que seriam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nasciam em cidades como São Paulo e Santos.
Essas transformações levariam à Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, com a instauração de novos modelos de cuidado na saúde mental brasileira. Em paralelo, a deficiência intelectual começava a perder o lugar de doença no senso comum, com crescentes debates sobre inclusão. Nessa mesma toada, projetos de arte e cultura abriam espaço para a integração de indivíduos que antes seriam declarados loucos e apartados do convívio social.
É exatamente na arte que Tonho da Lua encontra seu lugar, lembra Solange Castro Neves, 71, coautora da última edição de “Mulheres de Areia”. No fim da novela, o artesão vai embora com um circo, e conquista um espaço de autonomia e liberdade. Neves conta que Ivani Ribeiro e ela receberam orientações de um psiquiatra e de uma psicóloga durante a elaboração do personagem, que enfrenta preconceito, mas também é abraçado por moradores da pequena Pontal D’Areia, cidade onde a história se passa.
O diretor da novela, Wolf Maia, diz ter trabalhado para construir um Tonho da Lua sensível e orgânico, garantindo empatia e afeto espontâneo do público. Marcos Frota percebeu o resultado nas ruas. “Pessoas com deficiência se sentiam representadas, mães de crianças autistas vinham falar comigo, era bonito”, lembra.
Ainda que Tonho da Lua refletisse debates de seu tempo sobre inclusão e estigma, não houve uma estratégia da equipe da novela para integrar essas discussões de forma direta. Abordagens mais direcionadas ganharam força apenas anos depois, influenciadas pelas campanhas socioeducativas da escritora Glória Perez, conhecida por incluir temas de interesse público em suas tramas.
Em “Caminho das Índias” (2009), por exemplo, a autora abordou a esquizofrenia partindo do personagem Tarso Cadore (Bruno Gagliasso), que tem o transtorno. Convidado para dar consultoria à novela, Paulo Amarante conta ter orientado Perez a conhecer projetos culturais inclusivos em prol da saúde mental.
“No atual modelo socioeconômico, há pouco lugar para quem foge à normalidade estabelecida pelo sistema. É preciso criar campos alternativos de criação e socialização para todos”, diz o professor. Segundo Amarante, as orientações foram seguidas pela autora e Tarso termina a novela explorando seu potencial artístico em projeto sociocultural de uma clínica.
Foi nessa mesma linha de “utilidade pública”, que Agnaldo Silva abordou a dislexia em “Duas Caras” (2007) e Ângela Chaves trabalhou o autismo em “Éramos Seis” (2019), só para citar alguns exemplos.
Mas, se por um lado, campanhas de combate ao estigma sobre transtornos mentais e deficiência intelectual cresceram em novelas, por outro, velhos estereótipos, como o do vilão perverso que é internado em um hospício no último capítulo, permanecem comuns. “Muitas vezes a novela acaba reduzindo uma história complexa, que se desenrola por meses, a uma resposta rasa e elementar: a de que o sujeito é louco”, diz o professor.
A pesquisadora Maria Amélia Paiva Abrão, do Centro de Estudos de telenovela da Universidade de São Paulo (CETVN ECA-USP), acrescenta outro problema comum: a associação entre mulher e loucura ainda respinga nas narrativas, por mais que isso tenha diminuído nos últimos anos, com o avanço dos debates de gênero.
A representação de personagens femininas como figuras loucas, excessivamente ciumentas, desequilibradas ou histéricas costuma aparecer em roteiros, além de habitar o imaginário popular. Na visão dos especialistas, essa é uma das coisas que só serão superadas com a dissolução de estruturas sociais como o machismo. E, para que isso aconteça, a vida deve inspirar a arte e a arte deve inspirar a vida.