Aqui a praia é fria – e outros minicontos
Três pequenos contos sobre os (des)encontros de corações. A frieza que molha os pés, cansa as vistas ou desce pela garganta. Textos de Nelson Albuquerque Jr.
- Data: 17/01/2020 09:01
- Alterado: 17/01/2020 09:01
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Nelson Albuquerque Jr.
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Aqui a praia é fria
Aqui a praia é fria, o sol só ilumina, não esquenta, e as nuvens choram sangue. Meus pais trabalham com os peixes, longe, e eu brinco com os cocos despencados enquanto espero a volta das férias de verão. No verão, ela volta. Aqui a praia é fria, mas é onde minha menina passa as férias com seus pais.
A água é gelada e o nada sopra um silêncio frio. Todo dia é assim. É inverno. Falta muito para o próximo verão.
Falta muito, só que ela já apareceu. E eu não queria que ela tivesse aparecido, porque na semana passada choveu sangue. Aqui, quando as nuvens choram sangue, é sinal de desgraça.
Ela apareceu. E vinha correndo cansada, toda torta, de shorts e moletom, tropeçando e respirando com dificuldade o ar cortante.
Havia chovido sangue.
Caminhei em sua direção. O som das ondas mastigando as pedras era, agora, misturado ao choro dela. Um choro no vazio. Estávamos – e nos sentíamos – sozinhos no mundo.
Abracei-a.
Caímos ajoelhados na areia grossa e ficamos um infinito quietos, agarrados um ao outro. Ela com sua desgraça, e eu com minha chuva de sangue.
O que fizemos para merecer aquilo? O quê?
Agora, já estava feito.
Subscrito Online
Ficou meia hora com os olhos na tela fria. Queimando a íris num nome com o subscrito Online. Esperando que mudasse pra Digitando. Esperou e só. Nada mudou. Sua notificação preferida não apareceu naquela noite. E do outro lado da tela outros olhos também aguardavam a mudança de subscrito. Só esperaram e nada. Um oi mudaria tudo. Mas nenhuma velocidade de conexão foi suficiente para superar o tamanho dos orgulhos.
A um bom vinho
As águas que descem pelo rio regam as videiras desses campos. As uvas viníferas daí colhidas dão forma, cor e vigor a um vinho fino e delicado, ao mesmo tempo robusto e imponente, doador da volúpia e mais prazeres extasiantes. Aroma fresco de pétalas amarelas úmidas ao amanhecer. Sabor nobre e encorpado, enriquecido de mistérios noturnos e castidade em constante ameaça. Como uma menina complexa de olhar juvenil pouco inocente em silhueta insinuante. Gotas rebeldes, adstringentes e adocicadas, aspereza que acaricia e confunde o paladar, gotas que provocam a alma e instigam os desejos. Desvios marotos em labirinto deliciosamente sem saída. Inebriante. Bebida que não se abre, nem se oferece. Mas que daria a vida para ser sorvida lentamente numa apaixonada transfusão mútua de prazeres.