ABC: O berço da Democracia do Brasil
Artigo publicado no Caderno Pelas Barbas do Profeta em 2018 retratando o momento; Será que mudou? Vale a leitura
- Data: 31/03/2024 10:03
- Alterado: 31/03/2024 10:03
- Autor: Redação
- Fonte: Paulo Porto é roqueiro do ABC. Músico, Compositor, Pesquisador Cultural e Advogado.
Sou da geração 80. Em minha juventude, fui punk. Acho que sou até hoje. Antes disso, rasparam meu cabelo quando fui admitido no Colégio, aos 14 anos, por um chamado “vestibulinho”. Eu era bicho…. Tomei um trote…. Fiquei puto, evidente, com tamanha violência, afinal, eram 06 contra 01. Explodir uma bomba no banheiro daquela Escola Pública, que se viu obrigada a interromper as aulas naquela noite, foi minha fatídica vingança. No entanto, ninguém se feriu. Apesar da rebeldia incontida e do ódio juvenil, cuidamos para que fosse assim…
Protestar era o verbo da minha geração. Garotos Podres é a minha trilha sonora favorita até hoje… Rock do ABC, que, aliás, nesta coluna, é um tema que pretendo abordar bastante, com certeza, pois o Rock do ABC tem a mesma idade do Rock do mundo. É cultural. E poucos sabem disso…
Cresci nos movimentos grevistas e bem de perto, pois, meu pai fora a pessoa responsável pela primeira greve do ABC, em 1977, em uma indústria de pneus. Eu tinha 07 anos. Esqueçam a política, por hora. Não estou falando de partidos políticos, estou falando de liberdade e dignidade humana. E diante dos passos dessa história local – enquanto eu crescia – já se sabia que ali, no ABC, estava sendo escrito muito da história do País. Hoje sou homem cultural e vejo confirmada essa história. E eu, à época, ocupava-me em viver e ouvir a trilha sonora dessa história. Assim como as poesias e a arte, retratadas em jornais sindicais… esgotos não saneados.
Luta era a palavra de ordem. Resistência era a palavra que encorajava também aos covardes. E os covardes eram, na verdade, os pacíficos. E eles sabiam disso, no entanto, era necessário volume, a criação de uma única voz, uníssona, e esses, alheios, eram convidados (com intimação) a compor os altos decibéis da luta que libertaria o peão da opressão operária e, quase sem querer, mas conjuntamente, o povo, da vigília eclesiástica e da repressão e censura governamental. Para um País livre e igual. Que luta… Ali se entendia pela primeira vez para eles e para a minha geração, o desejo pela democracia. E, dessa forma, foram atingidos os rincões do poder. Sim, posto que se deleitavam ao longe. Em território e em ideais.
E o desejo moral desses jovens líderes, bobos (longe) da corte, explorados oprimidos em liberdade de pensamento, mas não em ação, em muito se revestiu, inclusive, da ironia, muito bem refletida por um pensamento do igualmente cáustico Millôr Fernandes que, em sede de sentença, faria lei: “O último refúgio do oprimido é a ironia e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, mas não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade”.
Mas seriam eles realmente mordazes, ásperos, agudos e determinados pela busca do bem comum? Minha resposta é não!
No entanto, certamente mais irônicos, posto que não buscavam o que não entendiam (a democracia). Queriam se livrar, isso sim, do que sabiam (da tirania). Um movimento puramente moral, não ideológico em suas raízes, portanto verdadeiro e não reflexivo, posto que a verdade não careça de pensamentos.
E embora ninguém busque o melhor para um País a partir do chão de uma fábrica, o que se sucedeu dessa licença poética, foi, senão, poesia. Foi um “ser ou não ser, eis a questão”. Notou-se que o que se cabia em direitos e igualdades em um chão de fábrica, caberia, igualmente, em uma sociedade carente e frágil das coisas básicas… Das coisas de se viver. Daí que, enfatizo, se tratava de uma revolução moral. Não social, não capitalista, etc. Nada mais do que a necessidade de se seguir a vida dignamente e em respeito à própria vida.
E eu cresci nessa confusão, assim como todos aqui do ABC. Os filhos desses operários, apinhados nas férteis terras concretadas e cinzas, convidando quem mais por ali estivesse a vagar por parcas luzes que teimavam em se dizer acesas, sedentas para iluminar caminhos sempre cinzas e embolorados nos seus tons mais graves, próximos ao chão, que insistia em renascer, lutando igualmente por cores e vida.
A barulhenta estamparia fabril que fazia tremer as paredes da minha casa e as tintas, em poucas cores, que não desejavam colorir o ambiente, mas apenas os carros, ensaiavam tendências do futuro de uma geração entregue aos cuidados do Estado, que merendava nosso crescimento e cedia à ótica de nos fazer iguais aos nossos pais.
E, na escola, nos formávamos em fila, entoávamos os hinos, hasteávamos a bandeira de nossa pátria, com aquele aventalzinho branco, perfilados, orgulhando nossos pais e mestres. Orgulhávamo-nos também. Ainda crianças, conhecemos o amor além dos pais e dos nossos irmãos. Pequeninos, conhecemos o amor à pátria, a nossa primeira extensão do amor além-lar.
Mas o barulho sem cor de nossos pais fizeram-se maiores que os produzidos pela poluidora fábrica, provedora de nosso crescimento “saudável” e livre, no entanto, não liberto: pois, crescemos e éramos nós quem procurava as cores entre as paredes, os caminhos entre determinadas ruas, a liberdade entre os livres…
Aprendemos a amar em maior escala… E ainda sem entender, cavamos nossos novos princípios, edificando o nosso não. Os sonhos dos Beatles e Rolling Stones chegaram 20 anos mais tarde. No entanto, já em flores, não em sementes. E assim, pudemos colher Ramones, Sex Pistols e Garotos Podres. Um necessário lixo cultural, no entanto, um adequado adubo aos tempos da ruptura, da voz do povo, para nos transformar, de jovens em homens da vez. E esse consequente e maravilhoso composto orgânico-protesto-musical – dos jovens – somou-se a glória dos guerreiros boias-frias da terra cinza para brotar uma nova flor, chamada democracia.
E não foi preciso conhecer, mas desejar viver plenamente a democracia. Mesmo sem saber do que se tratava e como, exatamente, lidar com ela. Hoje sabemos como é difícil isso. E como sabemos que os políticos de hoje se esforçam a te mostrar o mau dos outros a detrimento de seu bem. O Exercício do “não votar” em ninguém a fim de que “só me resta”, ou seja, “só sobrou eu – vote em mim”.
E um cara já sabia disso – lá pelos anos idos de 1.849: Henry Thoureau, o primeiro punk do mundo (dizem), diria que “para cada mil homens dedicados a cortar as folhas do mal, há apenas um atacando as raízes”. E antes que alguém se adiante em dizer que ele é contra qualquer governo – por ser um anarquista – vai outra frase dele aqui: “Eu não clamo por nenhum governo, eu clamo por um governo melhor”.
Segundo ele, a política não é moral (diferente das razões nascidas no chão da fábrica que culminou com as Diretas Já). E eu concordo. A política ocupa-se, apenas, do que é oportuno. Mas preste atenção: em uma democracia, a oportunidade nascerá do seu sim ou de seu não. E que saibamos sempre disso.
Voltando para o nosso século que se findava, no Brasil, a democracia seria, então, a falta de mais nada. E hoje somos a voz do povo, pelo povo e para o povo.
Nesse duro ano de 2.016, estamos passando por uma eleição municipal. E há muito que se falar do caldo dessa conquista, sabemos, entre prós e contras. Das coisas que deveriam ser ditas antes até as que se devem dizer amanhã. De Maquiavel – pelo ceticismo de seus pés no chão – a Thomas More – pela poesia de sua cabeça nas nuvens.
Mas a democracia é, acima de tudo, a busca pelo possível. O voto, uma outorga de poderes àqueles que saibam cuidar, proteger e evoluir sua terra e seu povo. E o povo, o detentor do maior poder. Dizer sim ou não dentro de uma comunidade capaz de pensar a coletividade. É certo que possa parecer frágil, mas é assim que nos fortalecemos.
Porque na entrega do seu sim àqueles que você elegeu, você deve concordar sem restringir; cobrar sem inflamar; e esperar sem esperar…. Já para os eleitos que você não elegeu, seus deveres são: ainda que sem concordar; saber negar sem ofender e aceitar sem perceber…. Pois após o pleito, é hora de você retomar a sua vida e buscar crescer junto com seu povo. Lembre-se: a democracia é a voz da maioria: ela pode até falhar de modo que você viva, sem conviver, mas permite que você viva, sem sobreviver…