Recomendação da OMS sobre gestão do sangue em cirurgias é pouco aplicada no Brasil
Pacientes desconhecem possibilidade de usar próprio sangue durante cirurgias
- Data: 20/01/2025 13:01
- Alterado: 20/01/2025 13:01
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Assessoria
Máquina XTRA, da LivaNova, é um moderno dispositivo de autotransfusão
Crédito:Concessão/LivaNova PLC
A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou em 2021 um documento1 sobre a necessidade urgente de se estabelecer um programa para o gerenciamento ideal do sangue do paciente em todo o mundo. No entanto, a implementação dessas diretrizes ainda não acontece de forma abrangente no sistema de saúde brasileiro.
Conhecido pela sigla PBM (do inglês, Patient Blood Management), esse programa envolve a combinação de técnicas, medicamentos e equipamentos, organizados em 3 pilares de ação, sendo no 1º pilar o tratamento de anemias e coagulopatias no período pré-operatório; no 2º. pilar, o uso de estratégias para se diminuir ou recuperar a perda de sangue no período intraoperatório; e, no 3º pilar, o conceito de tolerância à anemia por meio do uso das reservas fisiológicas do paciente no período pós-operatório, tomando todas as decisões centradas especificamente o caso de cada indivíduo.
Neste contexto, no segundo pilar tem-se o uso de estratégias e equipamentos que recuperam o sangue do próprio paciente durante a cirurgia, o que é chamado de autotransfusão, técnica em que o sangue do paciente que seria perdido durante a cirurgia é recuperado, passando por um processo de filtração, concentração e lavagem, quando são retiradas quaisquer impurezas, e então reinfundido no paciente. Embora a técnica não seja nova e apresente um significativo nível de aceitação entre os médicos devido a sua segurança, a maioria da população desconhece a possibilidade de usar seu próprio sangue durante a realização de cirurgias com potencial de sangramento, como as cardíacas e ortopédicas, entre outras.
A exceção seriam as Testemunhas de Jeová, que, por conta de suas convicções religiosas, não aceitam ser submetidas à transfusão de sangue alogênico (doado por terceiros), tendo, portanto, a autotransfusão como uma das opções viáveis para realização de cirurgias. Essas pessoas foram favorecidas por uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que garante o direito de recusar procedimentos médicos que envolvam transfusão de sangue. A medida, aprovada em setembro, também estabelece que o Estado tem a obrigação de oferecer as opções terapêuticas disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo se for necessário recorrer a estabelecimentos em outras localidades.
A discussão sobre a segurança de procedimentos cirúrgicos e uso da transfusão de sangue, assim como de transplantes, também veio à tona com o caso dos seis pacientes contaminados com o vírus HIV, no Rio de Janeiro, após receberem transplantes de rins, fígado, coração e córnea. O erro foi atribuído ao laboratório privado que analisou as amostras e indicou que não eram reagentes para o vírus da doença. O Ministério da Saúde solicitou a interdição cautelar do laboratório e ordenou a retestagem do material dos doadores.
Apesar dessa situação ter sido causada por um erro, procedimentos cirúrgicos em geral apresentam riscos se não feitos de maneira criteriosa, resguardando a segurança e a saúde do indivíduo. Particularmente, destacam-se as cirurgias que envolvem a perda do sangue do paciente e requerem transfusão sanguínea.
Segurança transfusional e hematológica
A adoção das diretrizes do PBM na Medicina diminui em muito a chance de um paciente receber transfusão de sangue. Isso é algo positivo, considerando que a transfusão convencional oferece riscos de contaminação e/ou a rejeição imunológica do corpo ao sangue recebido, além de efeitos inflamatórios e imunomodulatórios que aumentam a chance de infecções, do tempo de internação e até de mortalidade.
“A transfusão de sangue, por representar um transplante de células de uma pessoa para outra, tem significativos efeitos adversos associados. No uso da autotransfusão, o paciente recebe de volta o seu próprio sangue e evita as reações adversas consequentes da transfusão de sangue da outra pessoa. Com a implementação dos 3 pilares do PBM – preparar o paciente antes da cirurgia, evitar a perda ou recuperar o sangue durante o procedimento cirúrgico e adotar estratégias pós-operatórias para o bom uso das reservas fisiológicas do paciente para o manejo da anemia e do sangramento, há uma mudança em toda a linha de cuidado do paciente cirúrgico, para que ele esteja melhor preparado e seja melhor cuidado neste período, evitando-se o uso desnecessário de transfusões de sangue”, explica Isabel Cristina Céspedes, docente do Departamento de Morfologia e Genética da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e uma das responsáveis pela implementação do PBM no Hospital São Paulo, Hospital Universitário da Unifesp.
“Nesse sentido, é importante destacar também a vantajosa relação custo-benefício da autotransfusão para o sistema de saúde, assim como os aspectos legais que garantem a sua utilização em nosso país, através da Lei 10.205/2001, art. 3º, III (transfusão autóloga), Portaria de Consolidação n.º 5/2017 do Ministério da Saúde, artigos 7.º e 222 do Anexo IV, e da Portaria 346 do Ministério da Saúde (materiais para autotransfusão)”, complementa a especialista.
Cenários mundial e brasileiro
O conceito de PBM foi aprovado em 2010 pela Assembleia Mundial da Saúde e foi foco, em 2011, do Fórum Global para a Segurança do Sangue, promovido pela Organização Mundial da Saúde. Em 2017, o PBM foi recomendado como padrão de atendimento pela Comissão Europeia3 e, em 2019, tornou-se o padrão de manejo dos pacientes em todos os hospitais da Austrália, país que, com isso, registrou uma redução de 28% na mortalidade, 31% de redução em infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral, 15% de redução no tempo de internação hospitalar e 21% de redução nas taxas de infecção, junto com aproximadamente 100 milhões de dólares australianos de economia em custos diretos e indiretos em 6 anos1.
Já no Canadá, onde o PBM foi implementado com sucesso há 20 anos, reduções significativas no tempo de internação e taxas de infecção foram observadas em cirurgias cardíacas e ortopédicas, economizando cerca de 50 milhões de dólares canadenses por ano4.
Contudo, a iniciativa de implementar o PBM ainda é incipiente nos hospitais brasileiros, que ainda dependem, na maioria das vezes, de bolsas de sangue. Além dos maiores riscos para o paciente, outro agravante é a crescente escassez de bolsas de sangue no sistema de saúde, que se tornará cada vez mais evidente com o envelhecimento populacional.
“Temos visto o aumento da demanda por transfusões de sangue. Por exemplo, pelos cálculos do Ministério da Saúde, no início do ano, 1.081.8935 pessoas estavam à espera da realização de uma cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e parte dessas cirurgias tem sido adiada pela falta de sangue”, pontua Céspedes. “Do ponto de vista científico, e analisando o contexto da saúde no nosso país, fica claro que a implementação do PBM pelo Sistema Único de Saúde (SUS) traria vantagens muito significativas. Isto porque o PBM representa uma melhora na linha de cuidado do paciente, que traz vantagens clínicas, na segurança do paciente, e também financeiras, agindo em favor de seus usuários e do sistema como um todo”.
Uma importante dificuldade é que o gerenciamento do sangue do paciente ainda não está nas diretrizes curriculares do Ministério da Educação para o curso de Medicina. Por isso, a docente da Unifesp ressalta a importância da instauração de uma ampla conscientização e capacitação de profissionais da saúde a partir das instituições de formação, como as universidades, atuando no ensino de graduação, residências médica e multiprofissional, e cursos de capacitação. A partir disso, também seria necessário que lideranças hospitalares e da gestão pública dessem início a um amplo processo de fomento à implementação desse programa. Outra dificuldade relevante é que, apesar de sua custo-efetividade, apenas a minoria dos hospitais no Brasil possui máquinas de autotransfusão.
“Se o PBM traz mais segurança para o paciente e otimiza os recursos públicos em saúde, é um dever ético que o profissional da saúde busque a capacitação necessária para a sua mudança de prática para as estratégias do PBM, e venha a agir de forma ativa na implementação do programa em seus cenários de prática profissional. O PBM exige ainda uma atuação interdisciplinar e interprofissional, incluindo especialistas que abordem o PBM aplicado às diversas áreas, como na hematologia, anestesiologia, especialidades cirúrgicas, obstetrícia, pediatria, trauma, terapia intensiva e enfermagem”, ressalta a professora. “Já o paciente, sendo bem-informado, poderá assim ter condições de argumentar em favor da sua segurança e autonomia com o profissional da saúde”.
Avanços e próximos passos
Membros do Grupo PBM-HU-UNIFESP, coordenado por Isabel, e outros especialistas no tema participaram no mês de novembro de uma reunião da Comissão de Implementação do PBM pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. “Sensível ao tema do PBM, a Secretaria de Saúde do Estado de SP, através do Decreto Estadual nº: 68.742/2024 da Coordenadoria Geral de Administração, publicou a Resolução SS Nº 223, de 19 de setembro de 2024, que ‘institui no âmbito da Secretaria da Saúde a Comissão Interdisciplinar com o objetivo de desenvolver e implantar o programa de Gestão do Sangue do Paciente (PBM), nos equipamentos de saúde públicos do Estado de São Paulo.’ Foi uma reunião muito produtiva, para o estabelecimento de um cronograma de trabalho para ações rápidas e eficazes. Cabe destacar e parabenizar esta iniciativa ímpar do governo do Estado de São Paulo”, conta a docente. “Além disso, a Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados – CGSH da SAES do Ministério da Saúde já está trabalhando junto com a Hemorrede, nas ações necessárias para uma política nacional voltada ao estabelecimento do PBM.”
A inclusão do PBM nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação em Medicina vem sendo analisada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). O Grupo PBM-HU-UNIFESP já possui um sistema de capacitação no assunto, que se iniciou com a inclusão do PBM no curso de graduação em Medicina da Escola Paulista de Medicina como disciplina eletiva, e um curso de capacitação em PBM, obrigatório para todos os residentes médicos da Escola Paulista de Medicina/Hospital Universitário da Unifesp, por meio da Comissão de Residência Médica (COREME).
Como funciona a autotransfusão?
O processo é realizado por meio de equipamentos automatizados, como o XTRA da LivaNova, que aspiram o sangue do campo cirúrgico, recuperam e concentram as hemácias autólogas (do próprio paciente), componente mais crítico do sangue. Depois disso, essas hemácias são “lavadas” para eliminar completamente todas as impurezas e então, a bolsa de sangue autóloga, fresca, totalmente limpa e completamente segura, é reinfundida no paciente.
Kelton Caíres, gerente clínico da LivaNova, empresa global de tecnologia e inovação médica que produz máquinas de autotransfusão, aponta mais vantagens da autotransfusão além da redução do risco de infecções, de problemas imunológicos e de compatibilidade sanguínea: “o procedimento também disponibiliza o sangue em pouco tempo mesmo para pacientes com tipos raros de sangue ou com anticorpos específicos; além disso o sangue autólogo não sofre efeitos de estocagem como ocorre nas bolsas de sangue doado e pode apresentar custo mais baixo que a transfusão convencional, já que reduz o uso de sorologias de alto custo para identificar possíveis doenças transmissíveis bem como os testes de compatibilidade entre o doador e receptor”.
Pedro Andrade, biomédico e especialista de autotransfusão da Politec Saúde (representante autorizado LivaNova), reforça que “a utilização desse procedimento traz inúmeros benefícios, mas deverá ser operado por profissionais da saúde treinados e bem capacitados”.