‘Jamais sugeri o uso da nitazoxanida em qualquer paciente’, diz Patrícia Rocco
A principal autora do estudo sobre o uso do vermífugo diz que não houve intenção de politizar o tema e que a divulgação dos resultados não quis incentivar uso indiscriminado do remédio
- Data: 03/11/2020 16:11
- Alterado: 03/11/2020 16:11
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Patrícia Rocco participou com o ministro Marcos Pontes de evento em que dados parciais foram apresentados
Crédito:Alan Santos/PR
O estudo, financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), foi alvo de críticas de outros cientistas. Na cerimônia de apresentação dos dados parciais, que contou com a presença do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Marcos Pontes, o governo federal usou um gráfico de barras tirado de um banco de imagens, sem base nos dados reais da pesquisa, para ilustrar a eficácia do medicamento.
No vídeo de apresentação da conclusão do estudo, um narrador afirma, ao mesmo tempo em que o gráfico é mostrado, que “o resultado comprovou de forma científica a eficácia do medicamento na redução da carga viral na fase precoce da doença”.
Dias depois, quando os dados completos do estudo foram publicados em um artigo científico, pesquisadores afirmaram que os resultados, embora mostrem que o remédio promove redução de carga viral, não permitem concluir que ele tem benefício comprovado no tratamento. Os próprios autores dizem, no artigo, que a droga não foi capaz de diminuir o risco de complicações entre os pacientes.
Parte da comunidade científica questionou o destaque dado pelo governo a resultados tão modestos. O ministro Pontes chegou a afirmar que “temos um remédio para o tratamento inicial da covid-19” e que isso “ajuda a mudar o cenário da pandemia” no País.
Nas redes sociais, muitos médicos e cientistas se dividiram quanto à participação de Patrícia no estudo e na cerimônia do governo federal por conta do seu histórico respeitado na comunidade científica. Pesquisadora renomada na área de doenças respiratórias, ela é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da instituição. É uma das cinco mulheres a ocupar uma das cem cadeiras da prestigiosa Academia Nacional de Medicina (ANM) e membro titular também da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Ao Estadão, Patrícia afirma que o desenho do estudo não sofreu interferência do governo e que os resultados de redução de carga viral e melhora dos sintomas depois de sete dias são importantes.
Ao ser questionada sobre a cerimônia no Planalto, disse não ter se sentido constrangida pela apresentação do gráfico de banco de imagens, pois tratava-se de imagem “ilustrativa”. Ela não quis, porém, comentar a postura do presidente Bolsonaro na defesa de outras medicações sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina, que ela própria destacou no evento não ter eficácia contra a covid. Ao ser questionada sobre o tema, a médica disse acreditar que “para a população, seja fundamental discutirmos somente os dados científicos do artigo” da nitazoxanida.
Entrevista com Patrícia Rocco, médica, professora da UFRJ e principal autora do estudo sobre o vermífugo nitazoxanida
O artigo publicado no dia 23 de outubro mostra que a nitazoxanida reduz carga viral, mas não é capaz de levar à resolução dos sintomas em cinco dias nem reduzir hospitalizações pela covid. Outros pesquisadores dizem que o fato de reduzir carga viral não garante que o período de transmissão do doente diminui. Diante disso, a sra. acha que o medicamento tem, de fato, um potencial benefício clínico no tratamento da covid?
Há vários artigos que já demonstraram que a redução da carga viral está associada à diminuição da transmissibilidade do vírus assim como o agravamento da doença (Pujadas e cols. Lancet Respir Med 2020, Walsh et al. J. Infect, 2020). O conhecimento científico é uma construção e cada publicação tem a sua contribuição específica. É importante salientar que, se fôssemos testar uma nova molécula (remédio não existente no mercado), exclusiva para tratar a covid-19, levaríamos anos (mínimo de cinco anos) de pesquisa. Devido à pandemia e ao conhecimento de alta tecnologia como biologia molecular e estrutural, computação científica, quimioinformática e inteligência artificial do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), integrado ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização social vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), pudemos trabalhar de forma estratégica com a análise de reposicionamento de fármacos, reduzindo assim vários anos de pesquisa. Foram testados 2 mil medicamentos com o objetivo de identificar fármacos compostos por moléculas capazes de inibir proteínas fundamentais para a replicação viral do SARS-CoV-2. Os pesquisadores identificaram destes 2 mil medicamentos, cinco moléculas promissoras que seguiram para teste “in vitro” em células humanas renais e pulmonares infectadas com o SARS-CoV-2. Desses, o antiviral nitazoxanida foi o promissor em redução significativa da carga viral nessas células. Com o objetivo de confirmar se a nitazoxanida reduz a carga viral em pacientes acometidos pela covid-19 na fase precoce (até 3 dias) da doença foi elaborado o estudo clínico multicêntrico, randomizado, duplo cego, placebo controlado. No estudo que coordenamos com o antiviral nitazoxanida, observamos que, após cinco dias de tratamento, houve redução da carga viral sendo que 30% dos pacientes deste grupo apresentou teste negativo para SARS-CoV-2. Após sete dias do término do tratamento, 78% dos pacientes tornaram-se assintomáticos. Ademais, o antiviral nitazoxanida mostrou ser seguro e de baixo custo. A covid-19 é uma doença com comprometimento orgânico múltiplo e uma patogênese extremamente complexa. A ciência caminha dessa forma, passo a passo. A nitazoxanida tem potencial benefício clínico no tratamento da covid-19, entretanto, caberá ao médico definir a conduta de cada paciente.
Quanto ao desfecho de resolução de sintomas após sete dias de seguimento, alguns pesquisadores criticam que esse seria o desfecho secundário e não deveria embasar conclusões sobre o benefício da droga. Além disso, há algumas limitações levantadas pelos próprios autores e por outros cientistas sobre o monitoramento da amostra de participantes. A sra. acha que o resultado após sete dias é robusto mesmo considerando limitações como o número pequeno de sintomas monitorados (febre, tosse seca e fadiga), o fato de apenas pacientes que não apresentavam sintomas no quinto dia seguirem contatados e a ausência de um monitoramento por período prolongado de toda a amostra?
Como relatado no artigo, os dados mostram que houve aumento do número de pacientes assintomáticos quando comparados aos não tratados (placebo) após sete dias do final do tratamento. Isso é uma realidade e precisa ser informada, como relatado no próprio artigo. Todas as limitações foram descritas no artigo.
A sra. acha que a nitazoxanida deveria já ser indicada para tratamento da covid ou são necessários mais estudos? Se considerar que ela já deve ser indicada, para quais estágios da doença e quais perfis de pacientes?
A covid-19 é uma doença com comprometimento orgânico múltiplo e uma patogênese extremamente complexa. O estudo foi realizado na fase precoce da doença, quando os pacientes apresentavam sintomas durante um a três dias. Os dados científicos obtidos com o estudo restringem-se à análise do uso da medicação na fase precoce da covid. Esse foi o primeiro estudo multicêntrico, randomizado, duplo-cego, placebo controlado que avaliou a terapia com o antiviral nitazoxanida na fase precoce da doença. Diversos medicamentos vêm sendo utilizados de forma empírica, o que não é salutar. Trazer à tona conhecimento obtido é dever do pesquisador, principalmente durante uma pandemia.
O artigo já foi submetido para publicação em periódico científico? Se sim, para qual periódico? Há previsão de data para publicação?
Sim, o artigo já foi submetido para a publicação em periódico científico internacional. Não temos como precisar a data da publicação. O nome do periódico segue em sigilo.
No evento de apresentação dos resultados do estudo com a nitazoxanida no Palácio do Planalto, o ministro Marcos Pontes afirmou que “podemos dizer que temos um remédio para o tratamento inicial da covid-19” e que isso “ajuda a mudar o cenário da pandemia” no País. Mas o próprio artigo não fala dessa forma. Tem um tom mais comedido quanto aos resultados. A sra. concorda com essa afirmação do ministro?
Esse foi o primeiro estudo multicêntrico, randomizado, duplo cego, placebo controlado, em 1.575 voluntários realizado em um tempo recorde. O governo não interferiu no desenho do estudo e não quis politizar esse tema. Jamais sugeri o uso da nitazoxanida em qualquer paciente ou em qualquer fase da covid-19. Entretanto, é importante fomentar a discussão na comunidade científica nacional e internacional. Dessa forma, mais rapidamente outros grupos poderão realizar estudos em pacientes com diferentes níveis de gravidade e diferentes momentos da covid-19. A ciência não pode omitir dados durante uma pandemia e todo conhecimento precisa ser revelado. Quantos artigos foram publicados utilizando-se diferentes antivirais, anti-inflamatórios como os corticosteróides, inibidores de receptor IL-6, IL-1beta, para podermos chegar a conclusões consolidadas? A ciência caminha dessa forma, passo a passo. O que revelamos é que a nitazoxanida mostrou redução da carga viral, aumento do número de pacientes testados negativos, melhora tardia dos sintomas, além de ser segura, de baixo custo e poder ser utilizada no domicílio, não necessitando de admissão hospitalar para seu uso.
O governo federal foi muito criticado por apresentar um gráfico retirado de banco de imagens na apresentação dos dados do estudo. A sra. sabia da apresentação desse vídeo? De alguma forma a sra. ficou constrangida com aquela situação tendo em vista a sua larga experiência e reconhecimento como pesquisadora?
Não houve qualquer constrangimento, pois obviamente o gráfico foi apresentado de forma ilustrativa. Desde o começo da apresentação, fomos claros de que não poderíamos relatar os detalhes quantitativos sobre o estudo sob pena de prejudicarmos o ineditismo da publicação internacional naquele momento. A revista científica para qual o trabalho foi submetido não trabalha com “preprint”. Todavia, após o evento, solicitamos ao editor uma autorização especial devido à pandemia para se abrir uma exceção de divulgação em plataformas de divulgação sem revisão por pares, os chamados “preprint servers”.
O seu grupo de pesquisa pretende continuar os estudos com a nitazoxanida? Se sim, com quantos pacientes e para qual estágio da doença?
Nosso grupo estuda também os efeitos do antiviral nitazoxanida em 500 pacientes em fase mais avançada da doença (com pneumonia) e admitidos no hospital. O recrutamento dos pacientes voluntários foi finalizado e o banco de dados com os resultados está sendo analisado pelo estatístico.