Quem é Christina Sharpe, que quer ressignificar a vida negra e virá ao Brasil na Flip
Americana lança seu influente 'No Vestígio', que pensa como as palavras desmoronam e se reconstroem na negritude
- Data: 06/08/2023 11:08
- Alterado: 06/08/2023 11:08
- Autor: Redação
- Fonte: Walter Porto/Folhapress
Christina Sharpe
Crédito:Divulgação
São muitos os significados da palavra “wake” em inglês. Pode remeter a velório e pesar. Pode anunciar o gesto de acordar. Pode definir as ondas efêmeras que um barco deixa atrás de si enquanto atravessa o mar.
A tradução escolhida no Brasil para o título do rumoroso livro da americana Christina Sharpe, “In the Wake”, foi “No Vestígio”. A obra sai pela Ubu sete anos depois de sua publicação original e após deixar influência decisiva no pensamento racial nos Estados Unidos.
Uma das contribuições mais marcantes da obra está aí – analisar a experiência negra pelo seu caráter múltiplo, desassossegado, de inquieta e constante elaboração. Sim, é uma comunidade que vive sob o peso do racismo e de uma história de expropriação trágica. Mas não se resume a isso.
“Queria pensar em como as pessoas negras quebram e reformam linguagens que não eram originalmente nossas, mas que se tornaram nossas, e fazem as palavras dizerem coisas que não se esperava delas”, diz a autora de 58 anos, que virá apresentar todas essas nuances ao público brasileiro em novembro, na Flip.
O livro exemplifica lembrando casos de pessoas raptadas da África que se jogavam no oceano para evitar um destino de escravidão nas Américas. Nesses momentos, escreve, “o rio, o tempo e o afogamento são morte, desastre e possibilidade”.
“As palavras às vezes desmoronam quando são aplicadas à vida negra”, argumenta, em voz doce e professoral. “A palavra criança, por exemplo. Pessoas negras têm essa categoria negada a elas, no lugar virando criminoso, monstro, menor. Esta palavra é como um coro que nega às crianças negras a inocência e o cuidado ligados a ter uma infância.”
Sharpe, aliás, tem seu livro mais recente, “Ordinary Notes”, sendo traduzido neste instante para a Fósforo pela mesma Jess Oliveira que encarou “No Vestígio”. Deve sair só no ano que vem, mas a editora prepara uma versão mais enxuta para adiantar na Flip.
“A prática tradutória me ensinou que os textos nos mostram como querem e precisam ser traduzidos”, afirma Oliveira. “Deste modo, um texto poético que desafia e torce a gramática, não apenas da língua inglesa, mas de como tratamos a existência de pessoas negras, exige uma tradução poética, inventiva e cuidadosa.”
Oliveira usa em todo o livro – e na mensagem ao repórter – a letra maiúscula para todos os termos que se referem à comunidade negra, assim como tem se tornado padrão nos Estados Unidos, onde se grafa “Black” em caixa alta como se faz com diversas nacionalidades e culturas.
Quem ler com cuidado, acrescenta ela, perceberá que todas as traduções de “wake” vêm com termos iniciados em “V”, como “velório”, “vigília”, “velar”, “vereda”, “vigiar”. Para o título, a edição optou por “vestígio”.
A expressão que dá nome à obra é particularmente inspirada – e não é coincidência que seu trabalho de linguagem seja tão refinado, já que Sharpe é formada em letras, doutora em língua e literatura em inglês pela Universidade Cornell e devota de Toni Morrison. Hoje, ela dá aulas na Universidade York, no Canadá.
Viver no vestígio, na argumentação afiada de Sharpe, é encontrar pulsão de futuro ao mesmo tempo em que se convive com a morte passada e presente.
“Você só pode dizer que algo é passado dependendo de onde você está em relação àquilo”, afirma a autora, ecoando ideias da brasileira Leda Maria Martins. “Os elementos que compuseram os corpos dos nossos ancestrais ainda estão conosco. Vivemos em tempos simultâneos a eles. As coisas mudaram para melhor de algumas formas, mas muitos dos terrores do passado ainda estão conosco, prontos para irromper no presente.”
Basta se chocar com a similaridade entre os relatos de grupos mortos em barcos de refugiados negros no Mediterrâneo, na mídia de hoje, e as descrições tétricas da travessia dos tumbeiros em séculos passados. E ainda assim é preciso buscar brechas, como Sharpe faz no livro inteiro, para narrar as possibilidades da vida negra em meio à onipresença do olhar branco, às vezes sufocante.
Podemos ilustrar com um exemplo bastante visual que a autora oferece na segunda metade do livro, ao recortar uma notícia de jornal sobre a jovem Mikia Hutchings, presa por causa de uma pichação.
Sharpe borra cerca de dez linhas do início de uma reportagem e deixa transparecer só a manifestação em primeira pessoa da acusada: “Oi” foi a única palavra que ela pichou. “Eu só escrevi uma palavra e tive que passar por tudo isso. Não é justo.”
“Com nossas próprias anotações e revisões negras”, escreve a autora, “podemos localizar um contraponto à força do Estado que a colocou na primeira página do jornal The New York Times. A partir desse modo analítico, podemos começar a ver e ouvir Mikia.”
Esse exercício se estende a como Sharpe enxerga o retrato, nas redes sociais e na imprensa, de brutalidades contra a comunidade negra – e não foram poucas, especialmente nestes anos à flor da pele que insuflaram o Black Lives Matter.
“A circulação dessas imagens reproduz a violência, não a cessa. A resposta não é continuar a mostrar essas cenas violentas. Se circular essas imagens fizesse a violência parar, já estaríamos livres dela.”
São ideias que ecoam as de Saidiya Hartman, convidada ilustre da Flip do ano passado, com quem Sharpe guarda outras similaridades. Na exposição de sua pesquisa, a autora descreve muito de sua própria experiência – o primeiro capítulo narra uma sucessão dolorosa de mortes precoces de seus parentes.
“Incluo o que é pessoal aqui para conectar as forças sociais acerca do que é existir no vestígio para uma família específica ao que é existir no vestígio para todas as pessoas negras”, justifica ela no texto.
Não é por acaso que tantos autores em ascensão aos quais Sharpe se filia – muitos têm sido bem editados no Brasil, como Claudia Rankine, Frank Wilderson 3º e a poeta Dionne Brand, sua companheira – tenham uma retórica definida como experimental. É mesmo por aí.
Afinal, como ela diz, “as ortografias do vestígio exigem novos modos de escrita” – ou, como insiste em seguida, “novos modos de tornar sensível”.
NO VESTÍGIO – NEGRIDADE E EXISTÊNCIA
Preço R$ 69,90 (264 págs.)
Autoria Christina Sharpe.
Editora Ubu.
Tradução Jess Oliveira.