Paris-2024 exaltou barão de Coubertin e mulheres, sem ver contradição

Segundo os membros do comitê organizador e os dirigentes do COI (Comitê Olímpico Internacional), esses dois movimentos não foram contraditórios.

  • Data: 16/08/2024 14:08
  • Alterado: 16/08/2024 14:08
  • Autor: Redação
  • Fonte: FolhaPress/Marcos Guedes
Paris-2024 exaltou barão de Coubertin e mulheres, sem ver contradição

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A organização dos Jogos Olímpicos de Paris, encerrados no domingo (11), fez da paridade de gênero uma de suas bandeiras. Fez também do barão Pierre de Coubertin uma figura central das celebrações, embora ele não fosse exatamente um entusiasta da presença das mulheres nas competições esportivas.

Segundo os membros do comitê organizador e os dirigentes do COI (Comitê Olímpico Internacional), esses dois movimentos não foram contraditórios. Sempre que questionados sobre o assunto, eles ressaltaram a importância do fundador das Olimpíadas da era moderna e observaram que seus textos e declarações não podem ser tirados de seu contexto histórico.

Faz algum sentido. Coubertin era até considerado progressista na virada para o século 20. Mas não deixa de causar estranheza que a edição olímpica que estabeleceu como meta a equidade de gênero –numericamente, ficou no quase, com 49% de mulheres no contingente de atletas– tenha apresentado como símbolo alguém que chegou a considerar a prática esportiva feminina “imprópria”.

“Realmente, existe uma contradição nisso, porque o barão Pierre de Coubertin falava que as mulheres eram imitações imperfeitas. Foi só com a Alice Milliat enfrentando a situação e criando até um evento separado que ele efetivamente se viu quase forçado a colocar as mulheres em algumas modalidades”, afirmou à Folha Isabel Swan, 40.

A velejadora foi uma das pouco mais de 5.600 mulheres que participaram dos Jogos de 2024 –ao lado de Henrique Haddad, chegou à final da categoria dinghy misto e, com o décimo lugar, aposentou-se. Medalhista de bronze em Pequim, em 2008, ela chegou a atuar como coordenadora do departamento “mulher no esporte” do COB (Comitê Olímpico do Brasil).

A carioca está finalizando um mestrado em olimpismo, em Colônia, na Escola Superior de Esportes da Alemanha, e já estudou suficientemente para observar a citada contradição. Mas também tem o conhecimento necessário para entender que Coubertin “tem muito valor” no renascimento dos Jogos no fim do século 19 e no estabelecimento das diretrizes olímpicas: excelência, amizade e esporte.

“Ele foi o criador dos Jogos da era moderna. Então, existe esse valor intrínseco. São duas semanas em que o mundo respira os valores do esporte. Mas realmente equidade é um valor recente, a visão de mundo era muito restrita. Hoje, depois de 128 anos, a gente consegue chegar ao mesmo número de atletas. É um feito muito grande”, observou.

A primeira edição olímpica da era moderna, em 1896, em Atenas, não teve a presença oficial de mulheres, embora conste que Stamata Revithi tenha corrido por conta própria a maratona. Elas entraram no programa em 1900, apenas em modo demonstração, e encontraram no barão, presidente do COI entre 1896 e 1925, um dirigente pouco inclinado a lhes dar maior espaço.

O francês apontou em 1912 que uma disputa olímpica com mulheres seria “impraticável, desinteressante e imprópria”. Depois, especialmente a partir da oposição de Alice Milliat, que chegou a organizar uma espécie de olimpíada feminina paralela, viu-se obrigado a adaptar seus conceitos.

“Ele achava que as mulheres fossem macular um espaço de domínio dos homens, de pertencimento dos homens. Ele não era contrário à participação das mulheres no esporte, desde que fosse em situações não competitivas e não ocorressem em esportes públicos, em grandes eventos”, disse Silvana Goellner, que tem diversos trabalhos publicados sobre a mulher no esporte.

Segundo a pesquisadora, “os avanços que aconteceram nos últimos tempos têm uma relação muito forte com a luta das mulheres” para ocupar um espaço que, “na visão do barão, não era para elas”. Essa luta resultou na quase equidade numérica da edição olímpica de 2024, que teve constantes referências e reverências à figura de Coubertin.

Ele teve destaque na abertura, no rio Sena, e no encerramento, no Stade de France. Presente também em uma série de exposições com temática olímpica em Paris, apareceu antes dos eventos esportivos, na figura de um homem fantasiado que se misturava à multidão para depois ser encontrado no telão, em brincadeira do tipo “Onde Está Wally?”.

Em um esforço para evitar movimentos de rejeição, o COI realizou uma série de eventos sobre o legado de Pierre pouco antes dos Jogos. No fim de maio, organizou uma mesa-redonda a respeito do tema, cujos membros repetiram a todo momento sua importância na retomada das Olimpíadas e nos estudos acadêmicos, pela riqueza dos documentos e textos que deixou.

O site oficial da entidade tem uma página específica sobre a relação de seu velho presidente com o esporte feminino. O texto não nega as frases ditas pelo francês, absurdas aos olhos de hoje, mas as relativiza e observa que as mulheres, com o barão na presidência, foram de 22 nos Jogos de 1900, em Paris, a 135 nos Jogos de 1924, também em Paris.

O COI aponta que Pierre tinha “uma visão muito progressista dos direitos das mulheres”, cita a atual “cultura do cancelamento” e rebate aqueles que chamam Pierre de misógino, “uma acusação injusta que ignora o contexto histórico de sua época e, mais importante, a posição mais ampla de Coubertin sobre mulheres no esporte”.

“Na perspectiva de hoje, qualquer objeção às mulheres em competições esportivas é impensável, mas, no fim do século 19 e no início do século 20, os costumes sociais eram totalmente diferentes. A oposição à participação feminina nos esportes, para não mencionar a universidade, o exercício de uma profissão ou o voto, era a norma cultural”, diz o texto.

O argumento em favor do barão nesse sentido é que ele era um defensor da educação das mulheres, como escreveu em 1901, apontando-a como mecanismo de defesa. “Que as leis as protejam e as ponham em posição de resistir, até de escapar da tirania conjugal. Nada mais legítimo”, publicou Coubertin.

Segundo o COI, os escritos deixam “clara evidência da emergência de uma visão muito progressista dos direitos das mulheres”. A entidade observa ainda a posição à frente de seu tempo do barão em relação ao divórcio e recorda sua amizade com a feminista Juliette Adam, fundadora e editora da revista La Nouvelle Revue.

“Era um homem do seu tempo. Um aristocrata, historiador, educador, filósofo. E eu posso dizer que ele representava um homem do iluminismo do seu tempo. Um tempo em que os homens eram a marca da sociedade. Um tempo em que as mulheres eram consideradas figuras do mundo privado”, disse Katia Rubio, uma das referências em pesquisas sobre o movimento olímpico.

“Quando ele julga as mulheres incapazes de competir, ele reforça aquilo que a ciência da época dizia, que a competição esportiva não era apropriada para as mulheres. Então, olhando de hoje para o passado, parece um absurdo. Mas, na época, ele seguiu os padrões não ditados apenas pela sua moralidade, mas reforçando uma ciência feita por homens para o mundo masculino”, acrescentou.

O pensamento vai de encontro ao que defende o COI, que procurou exaltar o barão de Coubertin enquanto quase 6.000 mulheres competiam em Paris. No caso da delegação brasileira, foram as mulheres as responsáveis pelas três medalhas de ouro e por 12 dos 20 pódios alcançados na capital francesa.

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  • Data: 16/08/2024 02:08
  • Alterado:16/08/2024 14:08
  • Autor: Redação
  • Fonte: FolhaPress/Marcos Guedes









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