Indígenas ticunas veem casa desabar na beira do Solimões; terras caídas se espalham na seca extrema
Segundo o SGB (Serviço Geológico do Brasil), o fenômeno está associado a níveis muito baixos dos rios
- Data: 16/10/2023 22:10
- Alterado: 16/10/2023 22:10
- Autor: Vinicius Sassine e Lalo de Almeida
- Fonte: FOLHAPRESS
Crédito:Reprodução
A casa de madeira onde Adriana da Silva, 30, Maria Rosenilda, 24, e mais 13 irmãos cresceram, na beira do rio Solimões, é agora um amontoado de estacas misturadas à lama de um barranco.
A casa tinha uma sala, uma cozinha, um quarto e um banheiro. Caiu com tudo dentro -fogão, geladeira, televisão e o dinheiro que Manoel da Silva, 56, o dono do imóvel, juntava com a venda de peixes.
Tudo ruiu em 26 de setembro. O barranco começou a se deslocar, e a percepção do que ocorria serviu para Manoel e seis filhos que viviam na casa -todos crianças- fugirem do local antes de uma tragédia.
Entre o sinal de descolamento da terra e o desmoronamento, passaram-se menos de dez minutos.
Manoel e as crianças se mudaram para a casa que fica logo atrás, de uma das filhas. Vivem no mesmo espaço três adultos e nove crianças.
Todo mundo ali, no médio rio Solimões, perto de Tefé (AM), está desolado. Nunca houve sinal de que a terra cairia, ao longo das décadas que a casa existiu, segundo as filhas de Manoel. Ele quer reerguer o imóvel.
“Eu acho que ele tem que construir mesmo, mas não onde caiu. Para cá a terra é firme”, diz Maria Rosenilda.
“A gente cresceu nessa casa. Ela é da idade do papai. Nunca havia acontecido nada, nem barulho”, lamenta Adriana, que vive em Tefé. A família é de indígenas ticunas e integra a chamada Barreira de Cima.
O que ocorreu na margem do Solimões, da forma como ocorreu, pode ter uma associação direta com a seca extrema na região.
A estiagem, apontada como mais severa do que a de 2010 (esta tida como um extremo), provocou o desaparecimento de igarapés, a conversão de trechos inteiros do Solimões em areia, o superaquecimento do lago Tefé, mortandade de botos, isolamento de comunidades e falta de acesso dessas pessoas a água potável.
A isso se soma o fenômeno de terras caídas, comum em períodos secos na Amazônia e que vem se espalhando por diferentes pontos no Amazonas.
Segundo o SGB (Serviço Geológico do Brasil), o fenômeno está associado a níveis muito baixos dos rios. Quando há variação brusca nesses níveis, há possibilidade de movimentos das margens em grande proporção, com desmoronamento de barrancos. Em situações de seca extrema, os riscos aumentam.
Parte de uma vila em Beruri (AM), cidade na margem do rio Purus, deixou de existir depois do desmoronamento de um barranco. A tragédia está associada ao fenômeno de terras caídas.
Mais de 40 casas foram afetadas pela queda do barranco, na noite do último dia 30. Nelas viviam 300 pessoas. Pelo menos duas pessoas morreram no incidente.
Em Itacoatiara (AM), parte de um porto no rio Amazonas desabou no último dia 11, e o episódio também tem relação com terras caídas, segundo autoridades que acompanham as medidas necessárias para a garantia da logística na cidade. Obras de contenção estão sendo feitas pelo Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), conforme a Defesa Civil do Amazonas.
Na zona rural de Iranduba (AM), cidade próxima a Manaus, parte de uma escola foi arrastada com a queda de um barranco. E, em Manacapuru (AM), um barranco desabou em cima de um barco.
A Defesa Civil aponta a existência de processos erosivos avançados em diversas cidades do estado, inclusive em pontos de acesso a balsas para travessia de veículos.
“A situação é crítica em todo o estado”, afirma Francisco Máximo, secretário da Defesa Civil do Amazonas. “A gente está vivendo uma crise climática, e nem os ribeirinhos esperavam uma situação tão crítica.”
Na margem do rio Solimões, as irmãs ticunas tentam assimilar que a casa onde cresceram já não existe. O pai nasceu na mesma beira, segundo elas, numa casa que existiu antes. “Essa casa não caiu, ela deixou de existir porque ficou velha, mesmo”, diz Rosenilda.
A família vive da pesca e da plantação de banana e mandioca. Na estiagem, um poço artesiano vem garantindo o fornecimento de água. Quando falta, eles recorrem a um lago próximo.
O Solimões ainda tem bastante volume nesse ponto da região, se comparado aos trechos onde virou deserto.
“Ninguém sabe o que vai acontecer daqui para frente. Será que a seca vai ser sempre assim agora?”, questiona Adriana. “Meu pai tem esperança de construir a casa outra vez.”