Eleição nos EUA: quem ganha, às vezes, não leva

Sistema do Colégio Eleitoral dos EUA permite que o resultado final contrarie a escolha direta da maioria, como já ocorreu em eleições anteriores

  • Data: 26/09/2024 14:09
  • Alterado: 26/09/2024 14:09
  • Autor: Daniel Carvalho de Paula
  • Fonte: Mackenzie
Eleição nos EUA: quem ganha, às vezes, não leva

Donald Tump e Kamala Harris durante debate presidencial nos EUA

Crédito:RS via Fotos Públicas

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O sistema eleitoral dos EUA funciona por votação indireta. Sem pormenorizar, cada unidade federativa tem um número de delegados fixado por lei que compõem um colégio eleitoral. O candidato que conquistar a maioria do voto popular, dentro do Estado, leva o conjunto dos votos dos delegados. Contudo, o número de delegados não está em relação de proporcionalidade direta com a demografia contemporânea de cada Estado, sendo possível que um território muito populoso esteja, proporcionalmente, sub-representado no número de delegados.

Este sistema de eleição em duas fases não é exclusividade ianque, nem era incomum na época em que foi criado, há 235 anos, quando da promulgação da Constituição da jovem nação, ex-colônia britânica. O sistema foi pensado pelos “intocáveis” pais-fundadores para prevenir que o povo comum, vulnerável e pouco instruído, fosse levado a eleger demagogos e populistas à Presidência da República. O tiro saiu pela culatra e esse mesmo sistema permitiu que Donald Trump, um demagogo populista, para dizer o mínimo publicável, ocupasse o posto mais alto do executivo federal. Sua adversária em 2016, Hillary Clinton, apesar de ter “vencido” o voto popular, com a maioria indiscutível de células depositadas em seu nome, não “levou” a presidência dos 50 Estados, justamente pelo desequilíbrio entre o número de votos individuais e eleitores colegiados.

Hoje, em 2024, Trump, megaempresário, ex-presidente não reeleito para segundo turno consecutivo e condenado pela Justiça estadunidense, segue elegível e disputa o Salão Oval pelo Partido Republicano. Sua adversária pelo Partido Democrata é Kamala Harris, atual vice-presidente do país, promotora de justiça, que herdou o bastão do veteraníssimo Joe Biden. Enquanto esse último ainda estava concorrendo à reeleição, Trump sofreu um atentado e foi alvejado na orelha. A cena dele com punho fechado para o alto, conclamando a multidão: “Lutem! Lutem!”, levou muitos a darem por vencido o embate. O frágil Biden, dando sinais de senilidade, contra o mártir bilionário, quase um “Davi e Golias” invertido. 

A renúncia de Biden à corrida presidencial e a comoção gerada pela confirmação de Harris como candidata mudaram o cenário da disputa. A Democrata conseguiu, de imediato, aglutinar setores relutantes do partido dela e entre os independentes. Afinou o discurso para se comunicar com as maiorias de trabalhadores, abandonando a malfadada “pescaria em aquário”, ou “pregação aos convertidos”, pecado mortal do campo progressista lá – e cá.

A desenvoltura dela nos debates conseguiu enfrentar a estratégia circense do Republicano, que vinha se dando bem na veia da chacota, do moralismo e teorias conspiratórias. J. D. Vance, candidato a vice na chapa de Trump, também não tem agregado muito; ele foi escanteado pela campanha, já comparou, no passado, Trump a Hitler. “Casaca virada” nem sempre cai bem. Contudo, o certame está longe de ser resolvido. Será preciso “vender” aos Estados “neutros” a ideia de uma mulher negra como comandante-em-chefe. Tarefa dificílima. 

Em matéria de política externa, em um mundo tensionado por conflitos “quentes” e “frios”, Harris assume a postura beligerante dos seus predecessores democratas. A propaganda republicana, que pinta os progressistas como fracos, globalistas, entreguistas e moralmente degenerados, acirra muito a escalada nacionalista e militarista em administrações democratas. Kamala Harris também aposta em uma fórmula cinematográfica “CIA versus KGB”, em busca de aprovação popular e demonstração de força. Tem muito a perder as soluções diplomáticas. Dado o histórico, a contagem de corpos, presumidos efeitos colaterais, só tende a aumentar. 

O dia das eleições nos EUA, 5 de novembro, está “tão perto e tão longe”. Manter a empolgação do público e romper a bolha progressista é o grande desafio de Kamala Harris rumo à Casa Branca. Donald Trump, para além do voto conservador, já foi capaz de capturar, uma vez, o voto dos trabalhadores e de setores da sociedade que votavam nos Democratas há décadas. Basta repetir a dose. O caminho, que parecia desobstruído com Biden, trocando Zelensky por Putin, foi embaralhado com a frente ampla que cerca a vice-presidente, reforçada pelo colega de chapa, o governador, soldado e coach (nesse caso, esportivo e, não, de empreendedorismo), Tim Walz, que é a imagem quintessencial do americano médio, campeão de audiência. Todavia, como já se passou na história recente do Grande Irmão, que segue empunhando seu porrete, o Colégio Eleitoral poderá contradizer o voto popular. As democracias continuam na corda bamba.

Daniel Carvalho de Paula

Daniel é professor do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). É graduado, mestre e doutorando em História pela USP.

*O conteúdo dos artigos assinados não representa necessariamente a opinião do Mackenzie.

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  • Data: 26/09/2024 02:09
  • Alterado:26/09/2024 14:09
  • Autor: Daniel Carvalho de Paula
  • Fonte: Mackenzie









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