Com avanço da covid, festas privadas de réveillon motivam guerra na Justiça
Eventos vão piorar curva crescente do vírus, alertam especialistas
- Data: 30/12/2020 14:12
- Alterado: 30/12/2020 14:12
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Sul da Bahia. Nas redes sociais
Crédito:Reprodução/Whatsapp
Tribunal do RN manteve eventos liberados pelas prefeituras nas praias de Pipa e São Miguel do Gostoso; estabelecimentos e governo brigam por liminares em Porto Seguro
Enquanto as infecções pela covid-19 aumentam, especialistas reforçam recomendações de distanciamento social. Na contramão, cidades turísticas pelo País recebem festas, muitas delas clandestinas, com centenas e até milhares de frequentadores no feriado do réveillon. A realização de eventos do tipo tem se tornado uma guerra na Justiça, com disputas entre organizadores de festas, promotores do Ministério Público e governos. Na maior parte dos casos, atrações públicas de ano-novo foram canceladas.
Basta uma busca simples em sites de venda de ingresso para encontrar dezenas de exemplos em locais como o Rio e a região de Porto Seguro, no sul da Bahia. Em cidades turísticas, parte das celebrações já começou em meio a uma programação iniciada no domingo e que segue até o próximo fim de semana. Famosos também estão entre os anfitriões de grandes festas fechadas. Um evento em que é esperado o jogador Neymar já virou alvo de investigação.
Grande parte dessas festas é para um público de maior poder aquisitivo, com apresentação de artistas e DJs conhecidos e bebida e comida liberadas. Os organizadores divulgam seguir “protocolos” sanitários ou que estão “monitorando” a pandemia, embora publicações de frequentadores nas redes sociais mostrem aglomerações e pessoas sem máscaras. Alguns dizem exigir resultados recentes de testes de covid-19 – medida criticada por especialistas por permitir uma janela de alguns dias de uma eventual contaminação e pela possibilidade haver falso negativo, dentre outros motivos.
No primeiro dos cinco dias de festas de réveillon nas praias de Pipa e de São Miguel do Gostoso, destinos badalados do Rio Grande do Norte, protocolos sanitários e avisos não foram suficientes para evitar aglomerações e incentivar o uso de máscara. Na contramão de outros locais do Nordeste, decretos das cidades de Tibau do Sul (onde fica Pipa) e São Miguel do Gostoso proíbem eventos públicos ou patrocinados com dinheiro público no fim do ano, mas liberam os particulares se houver apresentação de exame negativo para covid por parte do público, distribuição de máscaras e aferição de temperatura na entrada.
O Ministério Público pediu a suspensão de festas, mas a Justiça alegou que não poderia intervir em determinações do Executivo, que liberou esse tipo de evento. Em dois meses, o número de internados nas UTIs privadas e públicas potiguares triplicou, com 256 pacientes nesta terça-feira. Tibau e São Miguel não têm leitos de terapia intensiva.
O Estadão não conseguiu contato com as duas prefeituras. O governo potiguar informou ter orientado as cidades a cancelarem todos os eventos do tipo. “Um cancelamento em cima da hora faria essas pessoas circularem livremente pelas ruas das praias, aumentando as aglomerações públicas”, justificou a assessoria do evento Let’s Pipa, que já ocorre na festa de Tibau do Sul.
Em Porto Seguro, vaivém de liminares para permitir eventos
Na Bahia, o Tribunal de Justiça proibiu no dia 26, a pedido do governo estadual, “shows e festas, públicas ou privadas” em Porto Seguro. Mas um juiz da comarca local, Rogério Barbosa, liberou nessa segunda festas para até 200 pessoas em quatro estabelecimentos. Para ele, os casos específicos envolviam ambientes controlados.
Em nova reviravolta, a liminar de liberação das festas caiu na noite dessa terça, após decisão do TJ baiano. No Twitter, o governador Rui Costa (PT) havia criticado “o risco à vida das pessoas” por quatro festas.
Na noite de segunda, 28, policiais identificaram nove eventos clandestinos em condomínios e pousadas de luxo nos distritos de Trancoso e Caraíva. Em uma das casas, no Condomínio Alto de Trancoso, onde a diária no período próximo ao réveillon é de R$ 35 mil, policiais acharam ao menos 300 pessoas. O organizador, de Brasília, se recusou a acabar a festa e foi lavrado um auto criminal. A região tem recebido grande fluxo nos últimos dias. No distrito próximo a Caraíva, Trancoso, os relatos são de engarrafamento de jatinhos particulares no aeroporto local.
“Parece que a pessoa arrisca porque faz a conta monetária e vê que vale a pena. O público, se via, era A, A, A, classe alta”, falou o tenente-coronel Anacleto França, comandante do 8.º Batalhão da PM de Porto Seguro. Em um dos vilarejos, com mil moradores, é prevista a chegada de 7 mil turistas. Fábio Costa, secretário de Serviços Públicos de Porto Seguro, disse que a cidade “sempre se posicionou contra esses eventos” e está atenta a qualquer princípio de aglomeração.
Santa Catarina briga com MP para liberar casas noturnas e ocupação máxima em hotéis
Já em Santa Catarina, a disputa foi entre o MP e o próprio governo, que havia decidido autorizar a ocupação máxima de hotéis, a abertura de casas noturnas e a realização de eventos sociais. A promotoria chegou a obter liminar favorável para suspender essa medida, mas a Justiça deu vitória ao governo na noite desta terça. O Executivo estadual e representantes do setor têm apontado o risco de eventos informais, menos sujeitos a controle e fiscalização. O mapa de risco para a covid aponta que todas as 16 regiões de Santa Catarina estão no nível de alerta gravíssimo. Segundo o MP, o decreto que afrouxou o isolamento não seguiu critérios técnicos e científicos.
Na decisão final sobre o assunto, desta terça, 29, o desembargador Raulino Jaco Bruning sustenta que o Judiciário só pode interferir nas opções políticas fundamentais “em situações excepcionais” e afirma que mesmo que não se desconheça “o crítico momento que o Brasil e outros países estão atravessando neste final de ano[…], compete precipuamente ao Poder Executivo fazer escolhas e eleger prioridades que assegurem o desenvolvimento e o funcionamento integral das múltiplas atividades do Estado”.
Presidente da Federação dos Hotéis, Bares e Similares, Estanislau Bresolin disse que o setor não teria condições de cumprir as determinações de controle da ocupação. “O hotel não tem domínio das reservas de forma integral. Talvez a maior parte das reservas são vendidas em pacotes, por meio de aplicativos ou de operadoras. É isso que estamos nos perguntando, como que faz? O cidadão compra uma passagem com hospedagem e nós que devemos decidir quem mandamos embora e quem fica?”, questionou emendando que “os hotéis não conseguirão fazer esse controle”.
Em Balneário Camboriú, a prefeitura ainda proibiu que população solte fogos entre 18h do dia 31 e 6h do dia 1º. Nesse mesmo período, fica vedada a montagem de tendas na praia. Segundo a prefeitura, casas noturnas estão funcionando como bares e restaurante, como forma de burlar as proibições, e a vigilância sanitária está visitando todos os estabelecimentos que estão anunciando ter noite de réveillon para esclarecer sobre as medidas sanitárias e de distanciamento.
Búzios prevê multa de até R$ 30 mil para coibir aglomeração
Búzios, na Região dos Lagos fluminense, tem endurecido medidas. Festas não autorizadas podem levar à cassação do alvará para o comércio e multa de até R$ 30 mil. Em barreiras sanitárias na cidade, é preciso apresentar código emitido por estabelecimentos comerciais e de hospedagem. A prefeitura disse que fiscais e agentes atuam “para coibir o desrespeito” às regras e “garantir a segurança de moradores e visitantes”. A cidade quase teve um lockdown há dez dias, por decisão judicial. O Estado diz dialogar com prefeituras e adotar ações para reduzir a circulação.
A cidade do Rio chama a atenção pela oferta de festas mesmo após cancelar a queima de fogos em Copacabana. Em um site de vendas, há ingressos para 11 eventos do tipo, com entradas de R$ 490 a R$ 2,5 mil. “Sabemos que fazer festa de réveillon, principalmente nesse ano, é uma grande responsabilidade. Mas estamos prontos para superar qualquer expectativa e, com todo o cuidado do mundo, fazer com que vivam o melhor réveillon de suas vidas”, diz a descrição de um dos eventos.
Especialistas ouvidos pelo Estadão criticam os organizadores de festas durante a pandemia, os frequentadores e a atuação do poder público nesses casos. Destacam que esses eventos vão impactar a curva já ascendente da doença no País, sobrecarregando cidades que já estão com a capacidade hospitalar comprometida.
“Estamos num momento de pandemia muito difícil no País inteiro. Até quem estava com os números não tão ruins, como Estados do Norte, estão com aumento de internações e óbitos”, destaca a infectologista Raquel Stucchi, professora da Unicamp. “Os números estão tão preocupantes quanto os da Europa, que já iniciou a vacinação e está com medidas para bloquear a transmissão.”
Ela pondera que as questões econômicas precisam ser observadas, mas que não é possível agir como se “tudo estivesse sob controle”. “Um gestor é inconsequente, quase criminoso, ao abrir tudo em nome do turismo.” Para Raquel, os organizadores e os frequentadores também devem ser punidos, seja por multa ou prestação de serviços.
Colunista do Estadão, professor da USP e da FGVSaúde e ex-presidente da Anvisa, o sanitarista Gonzalo Vecina Neto reitera que “não existe a menor possibilidade de qualquer tipo de medida preventiva efetiva para uma aglomeração”. Isto é, os protocolos citados pelos organizadores são insuficientes para realmente conter a doença.
Ele lembra, ainda, que a realização desses eventos em destinos turísticos pode gerar aumento rápido na demanda por leitos e atendimento em municípios pequenos, sem estrutura suficiente. “O que essas pessoas estão fazendo é levar a capacidade de produção da doença para regiões que talvez tivessem um índice de transmissão mais baixo.”
Vecina também reitera ser preciso que a população entenda que a decisão de ir a uma festa não afeta só a própria saúde, mas tem consequências coletivas. Isso porque a pessoa pode necessitar de atendimento na rede, mas, principalmente, pelo fato de o ser humano ser o principal vetor da doença. “O governo tem a obrigação de proteger a saúde da população. Esse tipo de evento tem de ser proibido. É responsabilidade do Estado evitar mortes”, diz. “São crimes que têm de ser punidos. E o Ministério Público também deveria atuar, tem a função de defender a ordem descrita nas leis, tem a obrigação de apurar e punir essas pessoas.”