Base bolsonarista acusa presidente de ‘traição’ e parte para confronto nas redes
Indicação de Kassio Nunes Marques para o Supremo e novas amizades de Bolsonaro fizeram com que apoiadores expusessem suas críticas
- Data: 05/10/2020 19:10
- Alterado: 05/10/2020 19:10
- Autor: Redação ABCdoABC
- Fonte: Estadão Conteúdo
Bolsonaro é chamado de 'traidor"por bolsonaristas que não concordam com a indicação de Kassio para o STF
Crédito:Reprodução
A indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) fez crescer o cordão de antigos bolsonaristas que partiram para o confronto aberto com Jair Bolsonaro, acusando o presidente de “traição” aos compromissos assumidos na campanha de 2018. O anúncio para a Corte provocou fortes críticas e uma onda de descontentamento, com ameaças de debandada e pressão para que Bolsonaro mude o nome do indicado.
O grupo dos desiludidos, já integrado por ex-ministros, como Sérgio Moro – que no passado chegou a ser cotado para uma vaga no STF e em abril pediu demissão da Justiça –; Luiz Henrique Mandetta – dispensado da Saúde – e Carlos Alberto dos Santos Cruz, praticamente enxotado da Secretaria de Governo – tem se ampliado cada dia mais. Os ataques vêm agora de todos os lados, principalmente da ala “raiz” do bolsonarismo, e a hasthag #BolsonaroTraidor desponta com força nas redes sociais.
Empresários, militares, evangélicos e ativistas ideológicos apontaram a escolha do juiz Marques como um “grave erro” e uma oportunidade perdida de nomear um “conservador” para a cadeira do ministro do STF Celso de Mello, que se aposentará no próximo dia 13. Bolsonaro disse estar “chateado” com a insatisfação. “Vocês confiam ou não em mim?”, perguntou ele a um grupo de militantes, na entrada do Palácio da Alvorada.
O encontro de Bolsonaro na casa do ministro do STF Dias Toffolli, no sábado, com a presença de Marques e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), agravou a situação. O movimento Vem Pra Rua, que liderou manifestações pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), passou a defender a saída de Bolsonaro e decretou “luto” do Brasil com o governo.
“Na campanha, Bolsonaro prometeu enfrentar o sistema. No poder, Bolsonaro negociou a indicação de Kassio Nunes com Gilmar, Toffoli e Davi Alcolumbre. Existe traição maior que essa?”, pergunta o Vem Pra Rua em post publicado nas redes, também citando o ministro do STF Gilmar Mendes.
O movimento começou a entoar a palavra de ordem “Fora, Bolsonaro” e está sugerindo protestos em todo o País, no próximo dia 25. “Falando sério. Precisamos pensar numa forma de acolher quem desembarca dessa canoa furada do bolsonarismo”, diz outra mensagem do Vem pra Rua.
Bolsonaristas ligados ao mercado financeiro também deram sinais de desembarque do governo. O tom mais forte veio de um dos responsáveis por apresentar ao presidente o ministro da Economia, Paulo Guedes, até pouco tempo atrás um dos pilares do governo. “Hora de desembarcar. Acabou. Um erro dessa envergadura não se faz por acaso”, reagiu Winston Ling, empresário e investidor sino-brasileiro, histórico partidário da causa conservadora e do liberalismo no País.
Apelos
Nesta segunda-feira, 5, Ling cobrou a mudança de Bolsonaro. “A escolha do novo integrante do STF pelo presidente pode ser revertida se houver pressão da base ativista conservadora. Bora pressionar?”, postou ele no Twitter.
Leandro Ruschel, consultor de investimentos e um dos mais influentes militantes conservadores nas redes sociais, também abriu abaixo assinado contra Kassio Marques, chamando a indicação de “tragédia“. “Acabou, porra”, escreveu Ruschel. “Está claro que precisamos começar tudo do zero. O presidente deixa claro, com a decisão (…), que a sua sustentação política se dará pelas forças que controlam o País desde 88, aglutinadas no vulgo Centrão, se afastando da militância conservadora que o elegeu”.
A extremista Vem pra Rua, Fora Bolsonaro, que chegou a ser presa em junho, acusada de organizar e participar de atos antidemocráticos, usou de ironia para subir o tom contra Bolsonaro. “Que inveja eu tenho do Toffoli. Ele pelo menos ganhou um abraço do Bolsonaro”, disse Sara, em mensagem nas redes. “Não reconheço Bolsonaro. . O homem que eu decidi entregar meu destino e vida para proteger um legado conservador”, emendou ela, afirmando ter sofrido pressão para não atacar o Supremo e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)
Sara afirmou, ainda, que a ordem do governo é demitir todas as pessoas ligadas a ela. “Afinal, a praga do Bolsonaro não é a esquerda, é a loirinha que causou, tentando defende-lo”, ironizou.
Para Gabriel Kanner, presidente do Instituto Brasil 200, grupo criado por empresários que apoiam o presidente, como seu tio Flávio Rocha, da Riachuelo, e Luciano Hang, das lojas Havan, o cenário é de desolação. “Bolsonaro abre mão de boa parte de sua base conservadora, em troca da base do ‘establishment’, que controla o Brasil há décadas”, argumentou Kanner.
Pimeira hora
A decepção de Winston Ling e Kanner, aliados de primeira hora no empresariado, se soma a uma lista cada vez mais longa de nomes que deixaram de apoiar Bolsonaro. Além de Sérgio Moro, ex-juiz da Lava Jato que chegou a ser considerado fundamental para a governabilidade e saiu em abril, após acusar Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal, o rol dos que chamam o presidente de “traidor” ganha cada vez mais reforço.
No Congresso, deputados como Joice Hasselmann – que foi líder do governo no Congresso e hoje é candidata do PSL à Prefeitura de São Paulo –, Alexandre Frota (atualmente no PSDB) e o senador Major Olímpio (PSL-SP) fazem parte dessa lista. Engrossa o time, ainda, o ex-secretário de Desestatização Salim Mattar, fundador da Localiza. Mattar pediu demissão, em agosto, alegando falta de apoio ao projeto das privatizações.
Todos esses nomes eram aliados do presidente desde a campanha e passaram a bater de frente com o clã Bolsonaro por disputas de poder. O general Santos Cruz, por exemplo, foi demitido da Secretaria de Governo sob acusação de criticar o presidente e também por causa do controle de verbas de Comunicação no Planalto. Isso sem contar Gustavo Bebianno, que havia sido defenestrado da Secretaria-Geral da Presidência com menos de dois meses de governo, após coordenar a campanha bolsonarista. Bebianno acabou se filiando ao PSDB, a exemplo de Frota, e morreu em março.
Moro virou persona non grata para os mais aguerridos defensores do bolsonarismo, que o enxergam como um dos principais adversários do presidente na eleição de 2022. O agora advogado e professor aproveitou para colar em Bolsonaro a falta de compromisso com o combate à corrupção
“Simples assim, se o presidente Jair Bolsonaro não indicar alguém ao STF comprometido com o combate à corrupção ou com a execução da condenação criminal em segunda instância, todos saberão a sua verdadeira natureza (muitos já sabem)”, escreveu o ex-ministro no Twitter, no último dia 1.º. Depois, apagou a mensagem.
Grupos de apoio a Moro tentam vincular Bolsonaro ao PT e convocaram um tuitaço associando o presidente ao partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tudo porque Kassio Marques, o desembargador indicado por Bolsonaro para o STF, tem bom trânsito não apenas com o Centrão, mas também com petistas, como o governador do Piauí, Wellington Dias.
A guerrilha virtual dos últimos dias teve algumas mensagens-chave, como #bolsonaropetista de um lado e e#euconfionobolsonaro, de outro. Além dessas duas hashtags, os termos “Traição”, “Decepção”, “KassioNunes” e “Moro” também figuraram entre as tendências mais citadas no Twitter desde que o presidente confirmou a indicação do desembargador para a Corte.
Credenciais
Governistas também têm cobrado que as credenciais de Marques sejam apresentadas. Muitos também viram com desconfiança a manifestação de apoio do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, rival político de Bolsonaro.
O novo indicado ao Supremo fez carreira como advogado em Teresina e em 2011 foi nomeado pela então presidente Dilma na vaga da OAB ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Uma das primeiras reações mais estridentes ao anúncio de Marques veio do núcleo seguidor do escritor Olavo de Carvalho, admirado pelo presidente e seus filhos. Os alunos de Olavo também têm feito campanha para que Bolsonaro volte atrás.
O guru do bolsonarismo, como Olavo é conhecido, usou palavras chulas para manifestar contrariedade e associar Marques à esquerda, citando até mesmo o ex-ministro petista José Dirceu, condenado por corrupção na Lava Jato.
“Justiça poética. A escolha que o Bolsonaro fez para sucessor do Celso de Merda é uma escolha de merda”, escreveu Olavo, com ofensa de praxe ao decano do STF. “Sugestão ao presidente. Quando se aposentar ou morrer o próximo ministro do STF, chega de intermediários: ponha logo no lugar dele o Zé Dirceu.”
O escritor argumentou que não fazia as críticas “contra” Bolsonaro, mas, sim, para que ele as ouvisse. A mesma linha foi seguida por blogueiros e youtubers de direita, como os apresentadores do Terça Livre, que disseram “criticar sempre, abandonar jamais”.
“Há uma enorme diferença entre bajular e compreender as circunstâncias, entre confiar e aceitar calado decisões ruins. Não trate como seita quem acreditou em você como um ser humano, Jair Bolsonaro. Explique sem exigir fé. Exija a razão e seus eleitores decidem”, disse Allan dos Santos.
Efeito Decotelli
Parte dos apoiadores torce por um “efeito Decotelli”, referência ao quase ministro da Educação Carlos Decotelli, nomeado e desnomeado antes mesmo de tomar posse por suspeita de fraude curricular. Um deles era o empresário e investidor Otávio Fakhoury, que ainda buscava emplacar a campanha #conservadornosupremojá.
O nome preferido pela ala ideológica é o jurista católico Ives Gandra Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
“Há nomes perfeitos para integrar o STF, como o desembargador Thompson Flores (TRF-4), mas os ‘perfeitos’ têm luz própria, elevado saber jurídico, e acabam ficando ao lado da lei, da ordem, da Justiça, da legalidade, da moral e da coerência. Tudo que, aparentemente, não serve para o STF”, protestou o general da reserva do Exército Paulo Chagas.
O militar era um cabo eleitoral de Bolsonaro, mas se afastou do núcleo duro do governo por divergências com o enfraquecimento do combate à corrupção e desprestígio aos generais.
“Sinto pela nomeação do novo ministro do STF. Temos poucas chances para criar pilares importantes de mudança e arriscamos apostar em dúvidas”, lamentou o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), um dos apoiadores de Bolsonaro na ala monarquista.
Bolsonaro usou a live da última quinta-feira à noite para dizer que Marques era vítima de campanha de desqualificação e que nos últimos 14 anos “todos tiveram alguma ligação com o PT”.
Na caixa de comentários, ele recebeu uma enxurrada de questionamentos e críticas sobre o passado do escolhido e saiu em sua defesa. “É uma covardia o que estão fazendo com ele (Marques). Que tal eu indicar o Sérgio Moro?”, disse Bolsonaro, na sexta-feira.
Sem citar nomes, o presidente reclamou de uma “autoridade” do Rio, por quem “prezava muito”, que protestou insistentemente em vídeos contra a indicação. “Estou chateado, sim. O pessoal que me apoia virando as costas, (dizem que) não votam mais”, admitiu Bolsonaro. “Essa autoridade do Rio de Janeiro queria que indicasse o dele. Fez vários vídeos, uma autoridade que diz que tem Deus no coração.”
O recado era endereçado ao pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que, em poucas horas, reforçou o ataque a Kassio Marques. “Lamento muito a escolha dele errada, por não ser um cara terrivelmente de direita. Sou aliado, apoio o presidente, mas não sou vaquinha de presépio. Ele não vai contar comigo por hipocrisia, puxa-saquismo e cinismo. Ele está indignado porque o pau em cima dele está violento nas redes sociais. A turma não deixou de apoiar o presidente, mas está fazendo um protesto. Que história é essa? Nós vamos ser iguais à esquerda e ter adoradores de presidente, que não erra? Ser questionado é salutar para o líder”, provocou o pastor Silas Malafaia, em entrevista ao Estadão. Malafaia negou que apoiasse o juiz federal Willian Douglas para a vaga de Celso de Mello.