Aneel teve corte de 42% na verba neste ano e opera com 27% a menos do efetivo
Para especialistas, agência e governo federal erraram ao não pressionarem mais a Enel por uma solução dos problemas em São Paulo
- Data: 18/10/2024 10:10
- Alterado: 18/10/2024 10:10
- Autor: Redação
- Fonte: Alexa Salomão/Folhapress
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)
Crédito:Arquivo/Agência Brasil
Para atuar em 2024, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) informou ao governo federal que precisava de R$ 244 milhões. O orçamento anual lhe destinou R$ 180 milhões, valor já inferior aos R$ 187 milhões que havia recebido e utilizado integralmente em 2023.
Ao longo do ano, porém, essa verba foi sofrendo cortes, que já somam R$ 38, 6 milhões. Ou seja, a agência trabalha neste ano com uma verba 42% menor em relação ao valor original necessário.
Não é diferente em relação ao quadro de servidores, que tem um déficit crônico de 27%. Nem o processo de seleção de 2010 ou o Enem dos Concursos deste ano conseguiram suprir as aposentadorias e a evasão de profissionais que buscam melhores salários em outras carreiras da administração federal. Neste ano, a Aneel já perdeu 19 servidores, recorde desde a sua criação.
A Aneel trabalha hoje com 560 profissionais e tem 205 vagas em aberto.
Desde maio, a diretoria está desfalcada e toma decisões com três diretores e um diretor-geral, o que emperra demandas importantes quando há empate.
Os números ajudam a ilustrar as responsabilidades pelo apagão prolongado que atingiu São Paulo. A Folha de S.Paulo ouviu especialistas para fazer um balanço de responsabilidades do poder público, e a avaliação é que a população sofre com uma sucessão de erros coletivos.
“Estamos diante da absoluta ausência de aprendizado. Ninguém entendeu que as mudanças climáticas exigem revisões da política pública, em todas as esferas, e não cumpre o papel que lhe cabe”, resume o pensamento geral Luis Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional de Consumidores de Energia e ex-secretário-executivo do MME.
Estamos diante da absoluta ausência de aprendizado. Ninguém entendeu que as mudanças climáticas exigem revisões da política pública, em todas as esferas, e não cumpre o papel que lhe cabe.
O problema começa por cima, explicam. O poder de dar e tomar a concessão na distribuição de energia é da União, por meio do MME (Ministério de Minas e Energia). O governo Lula (PT) passou alguns meses fazendo críticas à Enel SP, mas depois resolveu dar uma chance à empresa.
O ministro Alexandre Silveira solicitou à Aneel que instalasse o processo de avaliação, que poderia levar a caducidade, e reclamou numa entrevista coletiva nesta semana que sua determinação não foi levada adiante.
A pedido da reportagem, a pasta enviou o documento à Folha de S.Paulo . Datado de 1º de abril, ele cita os apagões de novembro de 2023 e o de março deste ano.
Em 15 de junho, o presidente Lula se reuniu com o CEO mundial da Enel na Itália e disse que o governo brasileiro estava disposto a renovar o acordo com a empresa porque ela tinha o compromisso de elevar o investimento de R$ 11 bilhões para R$ 20 bilhões nos próximos três anos. Também prometeu que não haveria mais apagões.
“O ministério foi no mínimo inativo. Como é isso: manda ofício e não cobra?”, pergunta Barata.
“A questão é que representantes do governo foram à Itália, e quando a alta direção da Enel se comprometeu a botar R$ 21 bilhões aqui, a discussão parou. Qual foi o sinal?”.
A Presidência da República disse à Folha de S.Paulo que a proposta de aumento de investimentos e solução de problemas foi feita em reunião com a presença da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, em encontro justamente para sanar os problemas.
“A fala do presidente Lula é clara, e estava condicionada, já na manifestação da época, ao aumento de investimentos e a não repetição de ocorrências”, destacou a nota. O MME afirmou ainda que a renovação de qualquer concessão de distribuição observará os prazos legais e dependerá do cumprimento de requisitos rigorosos.
Jerson Kelman, que foi diretor-geral da Aneel e hoje é colunista da Folha de S.Paulo, diz que se o governo tem urgência, pode exercer o seu papel de poder concedente.
“Como quem fiscaliza as distribuidoras é a Aneel, é natural que um processo de caducidade seja instruído por ela. Agora, o governo, no limite, se está absolutamente convencido de que tem que declarar a caducidade, pode pedir informações à Aneel e fazer a instrução ele mesmo”, afirma.
Os especialistas também avaliam que algo deu errado na fiscalização, uma vez que os problemas no plano de ação da Enel não foram identificados.
“A principal falha da agência foi acreditar que a Enel conseguiria organizar um plano e não ter feito uma marcação mais cerrada, mantendo um ou dois fiscais dentro da empresa”, diz Edvaldo Santana, que foi diretor da Aneel.
A principal falha da agência foi acreditar que a Enel conseguiria organizar um plano e não ter feito uma marcação mais cerrada, mantendo um ou dois fiscais dentro da empresa
diretor da Aneel
A agência federal enviou à Folha de S.Paulo o cronograma de ações que promoveu a partir do apagão do ano passado, e incluiu diligências, aplicação de multa, reuniões e workshop. A agência destacou que a redução dos recursos afetou a capacidade de fiscalização.
Esse trabalho foi realizado junto com Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), com quem a Aneel tem convênio desde 2008.
A agência estadual mantém 24 fiscais para atenderem sete contratos vigentes no estado. Ainda em março deste ano, no entanto, sentindo o problema de orçamento, a Arsesp solicitou à Aneel autorização para utilizar recursos próprios e realizar mais fiscalizações no estado. O aditivo foi assinado apenas neste mês.
Outro consenso é que há um claro problema de afinamento entre Prefeitura de São Paulo e Enel, porque os dois apagões prolongadas após tempestades envolvem o mesmo problema: queda de árvores. A consultora Stela Goldenstein reforça que a discussão das árvores é antiga, e que os dois lados adiam as soluções.
“Árvores caem porque podas são mal feitas ‘permitem a entrada de fungos e de predadores, o adoecimento, e facilitam que caiam num vendaval’, mas é o descuido com a fiação que leva a demanda de podas drásticas”, afirma ela.
Goldenstein diz que distribuidoras de energia ganham vendendo espaço do fio, e que também existem redes aéreas para telecomunicações, além de cabos clandestinos. “O jogo de empurra que vemos é simplista e oportunista do ponto de vista político”, afirma.
A gestão Ricardo Nunes (MDB) disse em nota que, desde maio de 2020, a Enel tem um convênio com a cidade para fazer o manejo de árvores nas áreas de risco com instalações elétricas, e que há reuniões mensais sobre o tema com as subprefeituras.
Na lista de envolvidos na questão, o mais isento, segundo o especialista, é o governo do estado, que não tem nenhuma ingerência regulatória sobre a distribuição de energia desde a privatização da Eletropaulo em 1998. Ainda assim, lembram que política pública se faz com cooperação entre os três níveis de governos – federal, estadual e municipal.
Dentro do cenário de mudanças climáticas, o governo do estado poderia, por exemplo, incluir na política pública ações conjuntas, com a prefeitura, para gestão das árvores, e com a União e as agências, na regulamentação da fiação.
O PAPEL DE CADA ENTE PÚBLICO
ANEEL, AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA
– Responsabilidade É o regulador. Possui autonomia e foi criado para aplicar a lei do setor fazendo a mediação de interesses de empresas e consumidores. Deve fiscalizar o cumprimento do contrato de concessão e avaliar os reajustes na conta de luz. Pode fazer intervenção nas distribuidoras e levantar argumentos para a caducidade, mas não tem poder de tirar a concessão. No caso da Enel SP, deve atuar na fiscalização e cobrar a adoção das mudanças que agilizem a religação da luz em caso temporal
– Erro Não ter adotado medidas mais drásticas e feito marcação cerrada na Enel SP, colocando um ou dois fiscais dentro da empresa para vistoriar as mudanças que evitariam lentidão na retomada do fornecimento em caso de novo evento climático extremo
– O que diz a Aneel A agência aplicou multa, acompanhou a elaboração do plano e manteve a fiscalização, por meio de convênio com a Arsesp (agência estadual). A agência opera com déficit de 248 servidores, 30% do quadro, e opera neste ano com um corte de 42% no seu orçamento
ARSESP, AGÊNCIA REGULADORA DE SERVIÇOS PÚBLICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO
– Responsabilidade Fiscalizar as concessionárias do setor por delegação de Aneel, de forma programada e sob demanda. Os tipos de fiscalização e os locais de verificação são definidos pela Aneel, por meio da metodologia de fiscalização estratégica
– Erro Não divulgar imediatamente para a população que a verba da Aneel era insuficiente e que isso poderia comprometer o acompanhamento da Enel
– O que diz a Arsesp Solicitou à Aneel, em março, autorização para utilizar recursos próprios e realizar mais fiscalizações em São Paulo, e o aditivo contratual só foi assinado em setembro. Mesmo, assim, intensificou a fiscalização da Enel SP e propôs aperfeiçoamentos regulatórios. Desde o último sábado (12), seus técnicos estão no centro de operações da Enel, fiscalizando a volta da energia
PREFEITURA DE SÃO PAULO
– Responsabilidade Manter política pública eficiente para fazer a gestão da arborização
– Erro Como ficou demonstrado, não conseguiu organizar ação coordenada com a Enel SP para gestão das árvores, nem para a poda ao longo do ano, nem para a sua remoção após evento climático extremo
– O que diz a prefeitura Responde pelo manejo das árvores fora da zona de risco das instalações elétricas, pois desde 2020 a Enel tem um convênio com a cidade de São Paulo para fazer o plano anual de manejo de árvores em zona controlada e de risco de instalações elétricas. A Secretaria Municipal de Subprefeituras mantém reuniões mensais com a concessionária para tratar do tema.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
– Responsabilidade Acompanhar e sugerir providências que podem ser ignoradas pelos demais entes porque a gestão estadual não tem ingerência regulatória sobre a distribuição de energia desde a privatização da Eletropaulo em 1998
– Erro Como tem instrumentos para ação local, dentro do cenário de mudanças climáticas, pode incluir na política pública ações conjuntas, com a Prefeitura de São Paulo, para gestão das árvores, e com o governo federal, na regulamentação da fiação, medidas que poderiam ser replicadas em todo o estado
– O que diz o governo do estado A atual gestão mobilizou seus organismos ligados ao estado para agilizar o atendimento à população, como Defesa Civil e Corpo de Bombeiros, Procon e até a Sabesp, e pediu urgência de ações à Arsesp
UNIÃO, REPRESENTADA PELO MME – MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA
– Responsabilidade É quem concede a prestação do serviço de distribuição e tem poder de decretar a caducidade. Deve se manter informado sobre a atuação da Aneel. Especificamente no caso da Enel SP, é importante reconhecer que a falha é um alerta para que reformule políticas públicas de longo prazo e prepare o setor de energia para as mudanças climáticas
– Erro Emitir sinais dúbios sobre Enel SP, se aproximando da empresa e indicando que poderia renovar a concessão, já que a empresa tinha a intenção de elevar investimentos. Atacar publicamente a Aneel, enquanto o governo deixa a agência sem dinheiro e pessoal para exercer a fiscalização
– O que diz União e MME A Aneel trata sobre recursos com o Ministério do Planejamento e Orçamento. O governo federal não foi responsável pela concessão da Enel, pela indicação dos diretores da agência, muito menos pela agência estadual, que faz a fiscalização. Além disso, a poda de árvores, apontada como parte do problema, não é atribuição federal.