Cortar benefícios sociais para pobre tem que ser último item da lista, diz Marcelo Medeiros
Para o especialista em desigualdades, o Brasil tem que estar preparado para arrecadar mais
- Data: 11/06/2024 13:06
- Alterado: 11/06/2024 13:06
- Autor: Redação
- Fonte: Adriana Fernandes/Folhapress
O sociólogo Marcelo Medeiros, autor de 'Os Ricos e os Pobres'
Crédito:Esperança Dias/Divulgação
Pesquisador da Universidade Columbia de Nova York, o brasileiro Marcelo Medeiros diz à Folha de S.Paulo que cortar os benefícios sociais para a população mais pobre deve ser o último item da lista do governo para reduzir as despesas.
Em meio ao crescimento do debate sobre a desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência social, Medeiros ressalta que a política do salário mínimo foi responsável pela redução da pobreza no Brasil.
“Vai parar de tentar reduzir pobreza e desigualdade? É isso que o pessoal está propondo? Tem que ser explícito e dizer: olha, nós concluímos que já reduzimos a pobreza demais, a desigualdade demais, e agora é hora de controlar o fiscal”, alerta.
Medeiros diz que há um conflito distributivo gigantesco por trás desse debate. “Não vamos fingir que não existe. “É mais fácil derrubar, tirar dinheiro de pobre, do que tirar dinheiro de rico”, afirma. Na sua avaliação, o Brasil tem que se preparar para arrecadar mais para enfrentar o problema das contas públicas no curto prazo.
Pergunta – O que acha do debate atual no Brasil de revisar gastos dos benefícios sociais?
Marcelo Medeiros – Economizar dinheiro com pobre é a última coisa que o Estado brasileiro deve fazer. O pobre é quem mais precisa de assistência. O Brasil tem muito lugar para economizar dinheiro antes de economizar com pobre. É óbvio que é preciso aumentar a arrecadação.
É impossível regular o lado fiscal só pelo lado do gasto. É irrealista quem estiver propondo isso. É preciso discutir seriamente como aumentar a arrecadação para não ter que avançar sobre a assistência.
O Brasil precisa de várias coisas. Precisa de uma nova reforma da previdência, porque é o principal gasto público. Então, precisa regular isso. Tem uma série de outros gastos [para revisar]. Precisa revisar, por exemplo, planos de subsídios.
P. – A proposta de desvinculação dos benefícios da previdência do salário mínimo foi colocada para reduzir despesas obrigatórias.
M. D. – Existe uma confusão sobre o peso que os aumentos dos salários mínimos têm nas contas públicas. Essa confusão ignora que o aumento do salário mínimo eleva a arrecadação previdenciária automaticamente porque um quinto do salário mínimo vira imposto imediatamente. Vira arrecadação previdenciária automaticamente. Como também aumenta a arrecadação dos estados e municípios. Aumenta, por exemplo, todo o direcionamento de ICMS que existe, os gastos com segurança, educação e saúde.
P. – O seu diagnóstico é que o debate está mal colocado pelo governo?
M. D. – As contas estão muito enviesadas para quem quer achar problema e não solução. Eu não estou dizendo que políticas não precisam ser ajustadas. Não existe política sem efeito negativo. O que importa é que os efeitos positivos superem os efeitos negativos. No caso da assistência, é muito difícil demonstrar uma conta dizendo que ela tem efeito negativo maior do que positivo. Não pode ter um raciocínio puramente fiscal porque a responsabilidade fiscal tem que andar de mão dada com a responsabilidade social. Separar as duas coisas é um erro grave.
P. – Onde o governo deveria começar a cortar as despesas primeiro?
M. D. – Essa é uma discussão de como faz a alocação do orçamento público inteiro. É fácil querer cortar em pobre, mas o Brasil gasta muito dinheiro com outras coisas. Tem que aumentar a arrecadação rapidamente. Não se consegue fazer corte fiscal rápido responsável. Se consegue fazer de forma irresponsável. Portanto, o Brasil tem que se preparar para arrecadar mais.
P. – O governo optou em não fazer a reforma da renda primeiro…
M. D. – Não é que o governo optou. O Congresso está tendo resistência. É uma questão política. Não é uma questão que o governo não quer. Só que o Congresso tem resistência. O Congresso é parte importante do problema. O Congresso não quer enfrentar a responsabilidade gigante que ele tem no controle fiscal brasileiro. E parte do controle fiscal não é só no corte, é também na arrecadação.
P. – Mas esse não é um debate trivial?
M. D. – Esse simplismo excessivo que é conduzido a discussão fiscal pode ser nocivo para as políticas como um todo. O aumento do salário mínimo foi a principal política de redução de pobreza e desigualdade no Brasil durante mais de uma década. Se parar de ter aumento do salário mínimo, a pergunta é: vai colocar o que no lugar? Ou vai parar de ter responsabilidade social? Vai parar de tentar reduzir pobreza e desigualdade? Tem que ser explícito e dizer: ‘olha, nós concluímos que já reduzimos a pobreza demais, a desigualdade demais, e agora é hora de controlar o fiscal’. Pode ser, mas tem que assumir a responsabilidade política disso. Eu quero ver quem vai assumir. Porque quem fizer isso vai perder a eleição. E o que vem depois? O ultrapopulismo de violência, segurança etc.
P. – O debate da desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência foi puxado agora pela ministra Simone Tebet (Planejamento), mas o próprio ministro Fernando Haddad tem defendido a discussão das vinculações…
M. D. – [interrupção da pergunta] A pergunta não é se vai desvincular. A pergunta é o que vai botar no lugar, porque foi e ainda é a principal política de redução de pobreza e desigualdade no país. Não foi Bolsa Família, não. Quem tem que pagar pelo ajuste?
P. – O mercado diz que a questão fiscal é um risco e por isso cobra mais. É uma roda viva?
M. D. – Aumenta a arrecadação, a pressão fiscal cai. A única maneira de controlar a pressão fiscal no curto prazo é aumentar a arrecadação. Eu entendo que a desvinculação faz parte do processo. E pode ser, pode desvincular. Não existe nada que esteja fora da mesa. O que temos que definir é prioridades. Se for necessário, pode cortar, inclusive, de pobre. Por trás disso tudo existe um conflito distributivo gigantesco. Não vamos fingir que não existe. Tem grupos brigando para ver quem se apropria disso tudo. E o grupo mais fraco são os pobres. É mais fácil derrubar, tirar dinheiro de pobre, do que tirar dinheiro de rico.
P. – Não existem algumas políticas que poderiam ser discutidas e modificadas, como é o caso do abono salarial?
M. D. – Tudo pode ser discutido. Agora, essas políticas não existem sem razão. As políticas não apareceram do nada. O que tem que resolver de fato é: o Brasil subsidia pesadamente o sistema previdenciário, de alguns grupos e não de todos.
P. – Quais?
M. D. – Os militares, por exemplo. São pesadamente subsidiados. Não é pouco, não. E eles são a principal categoria do funcionalismo ao lado dos professores.
P. – A mudança no piso constitucional de saúde e educação também está em discussão na área econômica para retirar algumas receitas extraordinárias do cálculo da receita. Qual sua avaliação?
M. D. – Isso é tipicamente uma escolha política. Eu sei que tem gente que diz que toda arrecadação que fizer está vinculada e aumenta automaticamente o gasto, aí o governo não tem margem. Esse é um problema que o Congresso precisa resolver. No dia que não tiver margem, vai ter que fazer ajuste em saúde. O que vai acontecer: o prefeito vai ter que fechar o hospital. O Congresso vai ter que resolver se vai peitar isso ou não.
P. – O que pode ser cortado?
M. D. – O Plano Safra, por exemplo, é um imenso subsídio para a soja, para a agricultura brasileira. O tributo sobre investimento de capital é 15%, é muito menor do que o tributo sobre salários. É claro que é complicado. Arrumar dinheiro não é fácil. Tem que fazer uma revisão geral de gasto. O Brasil tem uma quantidade muito grande de subsídios, que precisa ser passado pente fino nesses subsídios.
P. – Será preciso ter uma nova reforma da previdência para retirar os privilégios antes de retirar a vinculação?
M. D. – Claro. Controlar o aumento dos benefícios de assistência é o último tópico da lista, quando todo o resto já tiver sido feito. Suponhamos que, hipoteticamente, reduzir o benefício de assistência seria suficiente para fazer o equilíbrio fiscal no Brasil. Haveria reforma da Previdência posterior? Não. Haveria controle das disparidades tributárias gigantescas que o Brasil tem? Não. É óbvio que tem que começar pelos mais ricos para ter respaldo moral para fazer qualquer outro tipo de reforma.
P. – O Congresso diz que há um esgotamento do aumento da carga tributária?
M. D. – A insistência do Congresso em recusar isso é parte do problema.
P. – Mas a resistência vem da sociedade, das empresas, do mundo empresarial, dos contribuintes?
M. D. – Sim, claro. O Congresso é a expressão do mundo empresarial. O Congresso é a expressão disso. Agora, é ingênuo achar que vai ser possível, por exemplo, com uma nova reforma da Previdência, ter efeito no curto prazo. E o Brasil precisa resolver o problema no curto prazo. Por exemplo, o Armínio Fraga está dizendo isso. O Armínio está certo.
RAIO X
MARCELO MEDEIROS, 54
Sociológico e economista, é professor da Universidade Columbia de Nova York. Um dos mais conceituados pesquisadores da área social, é autor de uma série de estudos que buscam compreender as complexidades dos conflitos distributivos gerados pelas desigualdades e seus mecanismos de reprodução. No livro, o “Ricos e os Pobres” (Companhia das Letras), expõe as razões da gigantesca concentração de renda do Brasil.