Testemunhas de Jeová são acusadas de ‘tratamento desumano’ por isolar ex-fiéis
Organização diz que seguidores podem escolher cortar relações com quem lhe traz 'dor emocional'.
- Data: 25/02/2024 11:02
- Alterado: 25/02/2024 11:02
Crédito:Reprodução
“Bom dia, teria um minuto para ouvir uma mensagem da Bíblia?”
Jefferson Alexandrino de Lima lhe deu 12 anos. Em 2008, uma senhora bateu à porta para oferecer um curso bíblico. O pernambucano de 15 anos topou, se batizou e, até 2020, foi uma das Testemunhas de Jeová brasileiras. Até que pediu para sair.
Passou a discordar de diretrizes internas. Ele conta que começou aí seu apagamento dentro de uma comunidade religiosa conhecida por reduzir laços sociais com quem é de fora. De repente, ninguém queria mais saber dele. “Minha cunhada me bloqueou no WhatsApp, se despediu de mim como se eu tivesse morrido. Amigos também.”
Era como se Jefferson, que chegou a pioneiro (um tipo de missionário) e servo ministerial (como um diácono) na hierarquia dessa comunidade cristã, fosse um vírus do qual todos deveriam manter distância. “Os líderes incentivaram minha esposa a se separar de mim.” Ela se recusou e abandonou a crença também.
Em 2022, o formando em psicologia apresentou à Faculdade de Ciências Humanas de Olinda seu trabalho de conclusão de curso: “Ostracismo religioso e a depressão: uma análise sobre a relação do transtorno entre as ex-Testemunhas de Jeová”.
O tema mobilizou também uma petição virtual criada em janeiro por outro ex-adepto, o empresário Fabiano de Amo, 46. Sua meta, diz, é furar a bolha religiosa e pressionar Ministério Público e parlamentares a tomar alguma ação contra o tratamento concedido a desfiliados.
O texto menciona “tratamento desumano” e propõe “diálogo, liberdade e respeito mútuo entre membros e ex-membros”, para que os afastados “sejam reintegrados plenamente em suas famílias, comunidades e redes de apoio”.
A instituição que gere as Testemunhas no Brasil diz que a ruptura “não coloca fim aos vínculos que a pessoa tem com sua família”. A opção, diz em nota enviada à Folha de S.Paulo, seria de foro íntimo. “Além de razões religiosas, amigos e familiares também podem escolher limitar ou cortar a associação com uma pessoa desassociada por causa da dor emocional e outras dificuldades que tenha causado.”
“Organizados para Fazer a Vontade de Jeová”, livro da organização, fala dos desassociados –quem é excluído por infringir “pecados sérios que ameaçam a pureza espiritual e moral da congregação”, como “imoralidade sexual, adultério, homossexualismo [sic], blasfêmia, apostasia e idolatria”.
Há uma espécie de tribunal interno para julgar os casos. “Quando é necessário desassociar um pecador não arrependido, é feito o anúncio: ‘[Nome da pessoa] não é mais Testemunha de Jeová’. Ele servirá de alerta aos irmãos para que parem de se associar com aquela pessoa”, afirma o texto.
Existem ainda os dissociados, que abandonaram o segmento por livre escolha. “A respeito dos que renunciaram a fé, o apóstolo João escreveu: ‘Eles saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco’.” Também se recomenda cortar relações com eles.
Não há clareza jurídica sobre o tema, que pautou julgamentos mundo afora, com vereditos diversos. Em 2021, por exemplo, uma corte belga multou a organização, acusada de incitar ódio e discriminação contra antigos seguidores. Evocando liberdade religiosa, um tribunal de segunda instância reverteu a decisão.
Fabiano saiu em 2005, desconfortável com a doutrina que seguia desde pequeno. A “total intolerância” com outras religiões, diz, foi a gota d’água. Também cita a certeza inabalável “num fim do mundo que está sempre próximo, e quem não estiver dentro vai ser destruído pelo Deus deles, igual a Arca de Noé”.
A primeira previsão para o juízo final, na crença disseminada a partir do século 19 por estudantes da Bíblia, era 1914.
Ele define como “lavagem cerebral” o processo que fez com que os próprios pais lhe dissessem não o ver mais como filho.
Com sede nos EUA, as Testemunhas de Jeová estão no imaginário popular global, com banquinhas itinerantes onde ofertam panfletos sobre sua fé. No Brasil, eram 1,4 milhão de adeptos no Censo de 2010, o dado oficial mais atualizado sobre a religiosidade nacional.
Em publicações, a organização rebate críticas acumuladas ao longo dos anos. Algumas soam folclóricas a olhos externos, como não celebrar aniversários –o costume teria origem pagã. Inclua aí o Natal, porque “Jesus nos mandou comemorar sua morte, não seu nascimento”, e nem sequer haveria provas de que ele nasceu num 25 de dezembro.
Há instruções para não votar em qualquer candidato nem concorrer a cargos políticos.
A estrutura patriarcal é escancarada neste trecho de um estudo divulgado por eles: “Milhões de irmãs cristãs merecem os nossos parabéns. Elas são um excelente exemplo por serem submissas a seus maridos”.
Entre as orientações mais ruidosas está o veto a transfusão de sangue, o que já levou à Justiça casos como o dos pais que recusaram o procedimento para a filha recém-nascida prematura –o juiz descartou o argumento de liberdade de crença. O site das Testemunhas diz que as Escrituras “claramente nos ordenam a nos abster de sangue”.
Alguns tabus internos, como homem usar barba, foram flexibilizados no decorrer dos anos.
Sobre tratar outras crenças como falsas: “Jesus não concordava com a ideia de que existem várias religiões que levam à salvação. Na verdade, disse: ‘Estreito é o portão e apertada a estrada que conduz à vida, e poucos são os que o acham’. As Testemunhas acreditam que encontraram essa estrada”.
A dona de casa Raquel Gonçalves, 57, se viu obrigada a recalcular essa rota quando, pesquisando no celular do filho, enxergou contradições na fé que adotou em 1996. Em outubro, abdicou dela e virou pária para aqueles que por décadas haviam sido seus amigos.
“A gente não tem uma forma digna de sair”, diz. “Foi como se eu tivesse cometido um pecado grave. Me ignoram quando veem na rua. Tentei falar com uma irmã de fé, ela virou as costas e saiu. É horrível. Me tratam como se eu não fosse nada.”
Ela foi uma das seis ex-fiéis com quem a Folha de S.Paulo conversou, todas com relatos de rejeição.
O representante comercial Francisco Couras, 47, chegou a ancião no Ceará, cargo de liderança na estrutura, como um pastor. Mas, três anos atrás, saiu de cena. Conta que via “muita hipocrisia”, como anciões que pregavam humildade, “não procurar curso superior, mas um trabalho simples”, enquanto eles próprios levavam vidas abastadas.
Quando se retirou, parecia radioativo para quem tinha por irmão. As filhas, de 17 e 7 anos, viu poucas vezes desde então. A mãe delas e a primogênita são batizadas na religião. “A última vez que as visitei foi em julho, quando a caçula fez uma cirurgia.”
Foi considerado um apóstata para o que define como seita. “É igual a ser um demônio.”
Em seu projeto final de faculdade, Jefferson de Lima aborda a suspensão dessas relações fraternas “como fator desencadeante da depressão”. O transtorno é citado pela maioria que falou à reportagem.
A instituição, contudo, nega a ordem para evitar batizados que “pararam de participar na pregação ou até de se associar” com ela. Buscariam, isso sim, “contatar essas pessoas e reavivar seu interesse pelas coisas de Deus”.
Já os expulsos que “violaram o código moral da Bíblia” e não se arrependeram poderiam ser evitados. “A Bíblia diz claramente: ‘Removei o homem iníquo de entre vós’.”