Ainda acham que não existem pessoas negras no RS, diz Daiane dos Santos

Natural de Porto Alegre, Daiane agora está reproduzida em 50 metros de altura na empena cega do edifício da Fecomércio, no centro histórico da cidade.

  • Data: 19/11/2023 14:11
  • Alterado: 19/11/2023 14:11
Ainda acham que não existem pessoas negras no RS, diz Daiane dos Santos

Crédito:Reprodução

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Caminhando com certa dificuldade de salto alto ao lado de um viaduto para ser fotografada em frente ao mural em sua homenagem, Daiane dos Santos, 40, vê se repetir uma cena comum. Funcionários de uma clínica interrompem o trabalho e saem do prédio efusivamente para fazer uma foto com a ex-ginasta.

“Dizem que o brasileiro tem a memória curta. Comigo não tem sido curta, não. Espero poder retribuir o carinho”, afirmou.

Natural de Porto Alegre, Daiane agora está reproduzida em 50 metros de altura na empena cega do edifício da Fecomércio, no centro histórico da cidade. A pintura é de autoria do artista Kelvin Koubik e faz parte do legado deste ano para a cidade da Virada Sustentável. A escolha por homenagear Daiane se deu pelo aniversário do seu primeiro título mundial na ginástica artística, em Anaheim, nos Estados Unidos, em 2003.

Daiane acha curioso e até um pouco irônico que seja a sua face a escolhida para estar ali.

“Entre tantos atletas que já passaram por esta cidade, é minha a cara estampada no mural. Uma mulher periférica, negra, de um estado em que muita gente, até hoje, acha que não existem pessoas negras”, afirmou.

Não é feriado estadual no Rio Grande do Sul o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. Apesar disso, ela agora se vê valorizada. “Minha história se comunica com muita gente.”

História que está prestes a se tornar filme. Começarão no próximo ano as filmagens de uma cinebiografia da ginasta, que foi notada por uma treinadora aos tardios 11 anos brincando em um parquinho no bairro Menino Deus.

Em um ano, passou a integrar a equipe do tradicional Grêmio Náutico União. Em três, a disputar competições pela seleção brasileira.

A pintura de Daiane será avistada por todos que chegarem a Porto Alegre pelo viaduto da Conceição, principal acesso à cidade para quem chega do interior e do litoral gaúcho. Em alguns meses, a própria ex-ginasta passará por ali “de mala e cuia”, como os gaúchos se referem às mudanças em definitivo.

Distante do Rio Grande do Sul desde 2001, quando se mudou para Curitiba e depois para São Paulo, Daiane está se preparando para voltar a viver em Porto Alegre. Ela já escolheu uma casa no bairro Tristeza, na bucólica zona sul, próxima ao lago Guaíba e ao restante da família. Corintiana, foi intimada a escolher também um time entre Grêmio e Inter, e optou pelo Colorado para fazer companhia ao pai.

Mais perto de casa, pretende também se aproximar de patrocinadores gaúchos e expandir para o sul o Projeto Brasileirinhos, que incentiva a prática de ginástica para crianças e funciona em dois bairros paulistanos, Paraisópolis e Aricanduva. Ela também atua como embaixadora da ONU Mulheres.

Daiane se aposentou aos 29 anos da ginástica dizendo a todos que estava “cansada de saltar” e queria “caminhar um pouco pela vida”. Já estava formada em educação física pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas), o que ajudou a suavizar o final de carreira.

A gaúcha esteve em quatro edições dos Jogos Olímpicos e foi finalista na prova de solo em duas delas -Atenas (2004) e Pequim (2008). Ela não nega a frustração por 2004, quando, no auge da carreira e com as expectativas do ouro olímpico nas alturas, sofreu uma queda na apresentação final e ficou com a quinta colocação. Apesar disso, diz que jamais se sentiu cobrada pelos fãs, mas sim acolhida.

“Talvez não fosse para eu ser a protagonista dessa medalha [de ouro para o Brasil]. Talvez meu papel fosse ser uma coadjuvante para a medalha de outra pessoa. Talvez meu papel fosse mesmo vibrar pela Rebeca [Andrade, ouro na prova do salto nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021]. Saltar junto com ela e ajudar a contar essa história. Mostrar meu amor por ela”, afirmou.

Daiane classifica Rebeca, 24, como “uma fênix”, alguém que salta sorrindo fazendo nem parecer que em algum momento superou um histórico de lesões graves, uma delas de ligamento cruzado anterior do joelho direito.

Já a norte-americana Simone Biles, 26, ela vê como “um unicórnio” na ginástica. Alguém com tanta potência quanto a própria Daiane nos movimentos, mas com uma precisão jamais antes vista. Biles também viveu momento marcante justamente quando decidiu não saltar, decidindo pausar sua carreira para cuidar da saúde mental.

“Ela abriu a caixa de pandora para as pessoas perceberem que precisam se colocar em primeiro lugar, independentemente de ser uma multicampeã olímpica. São heróis e heroínas da vida real. E achei importante ela mesma comunicar isso. Não mandou ninguém falar”, afirmou a brasileira.

Daiane se diz contente por ter feito parte de uma seleção brasileira que se fortaleceu nos últimos anos mesmo não mantendo mais uma equipe permanente de atletas, como ocorria até 2008. Para ela, o time encontrou seu jeito de ser como “um jardim florido”, em que algumas atletas, como Jade Barbosa, 32, são as raízes e outras, como Júlia Soares, 18, os brotos.

O trabalho como ginasta e o estudo posterior deram à gaúcha a oportunidade de atuar como comentarista da modalidade na televisão –onde também apareceu em programas como “The Masked Singer Brasil” e “Dança dos Famosos”. Para ela, é orgulho ser exemplo para que meninas negras se enxerguem em todos os lugares.

“Quando uma menina negra passar pelo mural e perguntar quem é aquela pessoa, espero que a mãe responda: ‘Um dia, pode ser você’.”

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  • Data: 19/11/2023 02:11
  • Alterado:19/11/2023 14:11









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